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Livraria virtual 'Chesterton Livros'

23.2.11

Chesterton: paradoxos, ortodoxia e humorismo


Por Bernardo Bátiz Vazquez.*
Tradução e publicação autorizada


Ilustração de Víctor Garrido
Chesterton era um leitor, admirador e recriador de contos de fadas. Essa expressão popular que surge desde as raízes mais profundas da cultura européia, dá luz às épocas obscuras e ainda forma parte do espírito subjacente no mundo moderno; fábulas que são um reduto de ética e de filosofia popular. Esses relatos certamente não eram histórias senão lendas, por tanto mais dignas de crédito, dizia o mesmo Chesterton, quem talvez sem saber e sem dúvida sem propor-se, parecia um personagem desses contos, um gigante de seu próprio relato; era às vezes criador e a criatura de uma longa e aventurosa história contada para todos, para seus leitores e para seus detratores, para seus amigos e para os desconhecidos, sem distinção entre quem pensavam como ele ou quem discordava, sempre, em todo caso, com respeito e honradez intelectual.

Quem escreve ou fala de Chesterton, ainda hoje, mas obviamente em seu tempo ou pouco depois de sua morte, acontecida no ano de 1936, se referem e se referiam a ele como um gigante, no físico e no intelectual, um homem grande corpulento, grosso, figura inconfundível e alvo freqüente dos caricaturistas, um homem sem dúvida  desmesurado  que teve como característica fundamental escrever e publicar sem descanso, polemizar, dissentir das correntes de pensamento prevalentes, falar e inventar personagens e situações quase ao infinito.

Sendo um admirador da vida ativa e das aventuras, sua mesma vida foi uma longa aventura intelectual, um conto fantástico no qual era às vezes o gigante e Jack mata gigante; sempre em meio de ação, nas ruas, nas praças, nos bondes suburbanos e nas tradicionais tabernas de Londres e seus ao arredores, ainda que também, ocasionalmente, convidado aos salões  dos aristocratas e dos políticos de onde chegava com a mesma desenvoltura, agudo e picante de sua palestra plena de humor, polêmica, profunda e gentil.
Durante toda sua vida não parou de escrever poemas, novelas, ensaios, biografias, artigos de periódicos, epigramas, e de sua caneta nasceram centenas de páginas e todo esse universo de palavras, personagens, situações, paisagens baixo um plano mestre do qual nunca se separou: defender o cristianismo das heresias novas e antigas que o assediava, e que em sua visão de profeta moderno compreendia que seriam para o mundo fonte de desastres, exploração e guerras. Claro, ele estava seguro de que o que se chamava então de cultura ocidental seguiria adiante e vitoriosa

Desde muito jovem, quando ainda era, como descreveu a esposa de seu irmão Cecil, um homem alto e bonito, com uma espécie de Cyrano de Rostand no porte e na audácia, teve um gosto pela vida rica em incidentes e eventos cheia de aventuras que a mantinha disposto a duelos de inteligência, a argumentações e contra-argumentações, trocadilhos e paradoxos. Um duelista intelectual me parece uma boa descrição deste escritor, o verdadeiro caráter de seu tempo.

Gilbert k. Chesterton nasceu em 1874, foi amigo e cúmplice de travessuras intelectuais de Hillare Belloc, adversário em debates intermináveis, mas também um amigo de Bernard Shaw e H. G.Wells, entre outros, temido  na polêmica do periodismo, um brilhante e arrebatador em debate verbal, disposto sempre, como ele diz em Ortodoxia, para escrever um livro na primeira provocação.

E muitas vezes seguramente foi provocado, porque além de poemas, ensaios, artigos e epigramas para periódicos e revistas, algumas fundadas e dirigidas por ele mesmo, durante muito tempo escreveu ao menos um livro por ano, sem deixar de entregar suas contribuições periodísticas e sem deixar de dar conferências e palestras.

Desde sua primeira novela  de juventude, ganhou o respeito e o reconhecimento de seus contemporâneos. The Napoleon de Notting Hill mostra um estilo peculiar de  narrador, tanto profundo e bem-humorado, preciso e quase cinematográfico em suas descrições de paisagens e situações, o enredo imaginativo que beira o bizarro, mas se desdobra em um ambiente agradável e intrigante no contexto de um argumento político, uma constante encorajamento de apego, o amor à terra, que o leitor vislumbra primeiro e depois encontra atraente e inevitável.

Seu estilo único prosseguiu em muitas outras histórias em Londres e seus arredores, o nevoeiro do rio Tâmisa, as casas da vizinhança, cais, pôr do sol, pousadas, alterando as cores do nascer ou pôr do sol é o cenário para entrar, sair e personagens únicos e grandes atuações, muitas vezes, discutir e expressar idéias fortes e brilhantes, muitas vezes surpreendentes. Assim, o desfile mais famoso e perturbador de suas obras de ficção: O Homem Que Era Quinta-feira, o The Club of Queer Trades, os paradoxos do Sr. Pond, Tales of the Longbow e que pessoalmente eu acho que o mais bem sucedido e representante de sua pena, A esfera e da Cruz.

Não resisto deter-me aqui. Esse romance, que me encanta mesmo quando releio, foi um produto da sua maturidade intelectual, em que está envolvido em intermináveis aventuras de dois personagens inimigos declarados, um católico fervoroso e ateu, ambos escoceses, que decidem que um dos dois é supérfluo neste mundo e, como bons homens, recorrer a um duelo de espada para decidir o que é dispensável. O ataque concertado e nenhuma vantagem é evitada  uma e outra vez pela polícia, que persegue eles, e um personagem sinistro, o secretário de saúde, que trata todos os custos para convencer o público que o já conhecido duelo ideal puro romance, é apenas uma lenda e uma vaga superstição ruim.

E como os  irreconciliáveis amigos-inimigos, tem que fugir juntos para escapar dos incansáveis agentes de polícia a tentar apreendê-los, correr e correr pelos campos Inglês, parando em aldeias de pescadores e pousadas escondidas, sempre procurando um lugar calmo para lutar sem ser interrompido. Suas correrias lhes permitem discutir largamente sobre suas diferenças e ao leitor ser testemunha de seus argumentos veementes, carregados de convicção, expressados por ambos com integridade intelectual e agilidade mental.

O mais interessante desta difícil e intrincada história, que aprisiona o leitor, é que em suas correrias os duelistas vão encontrando com protótipos de correntes de pensamento e de formas intemporais de ser da gente. O ambicioso comerciante narigudo que, sabendo que está para cometer um crime, lhe vende as armas com tal desejo de suprir sua ganância; o seguidor de Nietzsche, adorador da violência, mas ele mesmo incapaz de enfrentar a ninguém, o leitor de Tolstoi, pacifista intransigente, e assim um a um, todos os representantes das ideologias  em voga. O desenlace, com seu ingrediente romântico, é uma engenhosa e indiscutível lição de ética, de filosofia e de política prática, mas também uma mostra irritável da inteligência do narrador, capaz de criar situações inesperadas e surpresas.

Chesterton também foi cultivador magistral da novela policial, campo da literatura no qual lança seu personagem singular, o pequeno e aparentemente ingênuo e distraído Padre Brown, herói principal, tão sagaz e observador como Sherlock Holmes de Connan Doyle, destacando-se no conhecimento da natureza humana. Não é menos interessante o companheiro de andanças do Padre Brown, o ladrão arrependido, ágil e forte, amigo de aventuras e freqüente acompanhante do sacerdote católico, o francês Flambeau, sempre disposto a ação e feitos de coragem, parte da equipe, equilíbrio dialético e participante das aventuras. 

Chesterton poderia ter atingido as famas somente com os contos curtos, pequenas preciosidades da novela policial nas que o Padre Brown é o ator principal, mas suas coleções policiais são apenas uma mostra de sua vasta obra, ainda que sejam uma amostra genial. Seis livros, nada a menos, de aventuras, nos que os crimes e os criminosos mais hediondos são descobertos pela sagacidade e o poder de observação do Padre Brown, sempre alerta para se concentrar no menor dos detalhes que revelam o infrator às infrações intelectuais e morais que o levaram ao delito.

Desde A Inocência do Padre Brown, em 1911, que causou grande rebuliço no mundo intelectual da época, até o escândalo do Padre Brown, em 1939, escrito próximo do fim de sua vida, uma de suas aventuras que sucede na fronteira entre México e Estados Unidos e que fecha a série. Dela forma parte A sabedoria do Padre Bown, A Incredulidade do Padre Brown (como crente fervoroso) e O Segredo do Padre Brown. Sem desperdício, igualmente seus relatos de The Flying Inn, The Club of Queer Trades e Tales Of The Long Bow, todos com sua peculiaridade, recheados com crenças populares e as formas de ser de seu amado povo inglês.

Outro exemplo a mais do gênio chestertoniano, diferente no tom e na intenção, mas tão brilhante, tão rico, como seus relatos imaginários, a constitui o conjunto de seus livros biográficos e históricos. Pesquisou e escreveu sobre as vidas de personagens tão distantes e diferentes como Chaucer e do filósofo Tomás de Aquino, ou como Charles Dickens, de quem se sentia discípulo e admirador, e São Francisco de Assis, a quem venerava sinceramente e quem sempre admirou.

Para Chesterton, São Francisco, o santo poeta, admirador da natureza, incansável caminhante e fundador de comunidades e eremitas,  é o protótipo do santo católico, a quem confronta e compara com o misticismo oriental encarnado em Buda. Enquanto São Francisco, sempre ativo e inquieto, vendo de um lugar a outro ou construindo algo, é como uma corda de violino tensa e vibrante, aberto e entregado ao mundo que o rodeia, Buda é um contemplador de si mesmo, “absorto”, imóvel, aspirando ao nirvana, ao nada, a perda da individualidade no todo. São Francisco, pelo contrário, incansável, assombrado ante o que o cerca e cantando a Deus e a natureza, resgata e ressalta sua própria e intransferível individualidade, que transcende, mas que não se perde nem se confunde.

De Charçes Dickens disse uma vez que o autor das As aventuras de Mr. Picwick, de David Copperfield, entre outras novelas, encontrou “o ideal vivente e vigorante da Inglaterra nas massas”, onde se deve buscar, e acrescenta: “Dickens era humorista, sentimental, otimista, pobre, inglês, e sua maior glória foi de ter visto a humanidade em seu vigor assombroso e não ter apresentado nunca em suas obras a um cavalheiro. ”

Digno de menção é seu admirável estudo sobre Santo Tomás de Aquino, “o boi mudo”, com quem sem dúvida se identificava por seu tamanho físico e, com certeza, seus raciocínios. Também por sua perseverança e por sua solidez nos campos em que são imprescindíveis a fé a razão. Deste ensaio biográfico expressou Étienne Gilson, o filósofo e erudito francês, que ele apreciava em Chesterton, mais que como um historiado, como um teólogo.

Outro livro assombroso de Chesterton é sua A Short History of England, na que faz uso da sua erudição inigualável e de amor a seu país, sem que isto lhe impeça de ser um crítico certeiro dos personagens negativos que descobre entre os ambiciosos homens ambiciosos exploradores de campesinos e, mais adiante, entre os navegantes, mercadores escravistas e piratas. No entanto, destaca figuras populares como o bom rei Ricardo, os feitos dos trovadores medievais, e ao autor de Utopia, Tomás Moro, chanceler do reino e mártir da consciência e da integridade pessoal.

Ortodoxia é outra de suas universalmente conhecidas obras, inclassificável ensaio entre alegação, confissão e credo pessoal, livro definitivo em que explica a aventura intelectual de sua vida; Nele, Chesterton expressa com maestria sem igual suas mais profundas convicções, reitera as críticas as heresias do falso progresso e do individualismo egoísta de seu tempo, e defende com brilhantismo e coragem a filosofia cristã, o que hoje chamaríamos a justiça social, e as classes pobres da Inglaterra.

Disse, como preâmbulo e metáfora de sua aventura, que sempre havia querido escrever a história de um navegante audaz que sai da velha Inglaterra para descobrir terras novas e longínquas. E ao término do percurso, em uma praia exótica e desconhecida, desembarca de novo na mesma velha ilha europea da que havia saído à aventura. A sensação do marinheiro é dupla e simultânea, descobre algo novo e assombroso que é ao mesmo tempo familiar, seguro e acolhedor.

Em Ortodoxia, traduzido ao espanhol de forma insuperável por Alfonso Reyes, não há frase nem palavra desperdiçada o sobrando; G.K.C., como foi identificado por anos, sem esta obra não será entendido completamente. Seu relato brevíssimo de explorador que busca o desconhecido e regressa ao lar, é a metáfora de sua inquietude intelectual corre e percorre caminhos do pensamento, e ao final encontra confiante a segurança da filosofia tradicional que formou a Europa. Em um dos seus clássicos paradoxos disse: “Eu sou o homem que com suprema ousadia descobriu o que já havia sido descoberto.”

Não foi certamente um especialista em economia nem um politólogo ao estilo moderno, mas em toda a sua obra se coloca do lado do povo contra os exploradores, do lado dos humildes e sua diginidade, e nunca do lado dos soberbos, arrogantes, ganansiosos que se vangloriam de sua falsa grandeza. Frente ao capitalismo desenfreado da era victoriana, antepõe sua crítica certeira aos mercadores e agiotas, e não podemos esquecer, ao tratar deste tema, que em sua juventude escreveu para a moralização da política e em defesa dos desfavorecidos. Foi na revista New Witness onde defendeu e divulgou com outros camaradas, a corrente que chamaram ‘Distributismo’, nessa defesa da economia popular, como diríamos hoje e então especialmente, em defesa da pequena propriedade e contra a concentração da riqueza. Foi sempre crítico severo da plutocracia e do governo fundado na proteção dos interesses dos poderosos.

Seu pensamento, seus personagens, sua alegre sabedoria influiu profundamente em todas as partes. Os conhecedores do tema sabem que por todo o mundo, não só a Inglaterra, são vários os clubes de seguidores e admiradores de Chesterton, e há páginas e portais na internet que se dedicam a sua obra. Na Espanha as edições de traduções de seus livro são repartidas uma e outra vez; um de seus tradutores foi nada menos que Manuel Azaña. Na América Latina sua influência é indiscutível; podemos dizer que ao menos dois dos grandes das letras latioamericanas o admiraram e respeitaram; Alfonso Reyes foi seu leitor assíduo e seu melhor tradutor ao espanhol, e Jorge Luis Borges, quem o citava com freqüência e se sentia seu devedor intelectual discípulo. No México freqüentemente ele é citado. Um grande artigo de Federico Arteaga, que conservo sem data e nem fonte, mas que foi publicado em uma revista local, é um excelente estudo e uma homenagem a Chesterton. A editora Polis, que tão bons livros tem em seu acerco, contrários ao pensamento oficial, em 1937, pouco depois da desaparição física de Chesterton, publicou um pequeno livro em sua homenagem, no qual escreveram ensaios sobre ele, o inquieto intelectual e alma de Polis, Jesús Guiza e Acevedo, o Padre Antônio Brambila e Joaquim García Pimentel.

Para mim, e para muitos de minha geração, que nascemos na década em que Chesterton morreu, sua influência tem sido indiscutível e é nosso dever resgatá-lo para, ao menos, sugerir às novas inquietudes e às novas gerações que buscam seu próprio caminho e aspiram ainda a pensar e convencer. Termino este trabalho com uma citação clássica do extraordinário escritor, tomada de Ortodoxia, quando no primeiro capítulo do livro explica a quem sim e a quem não dirige seu apelo: “Se um homem diz que a extinção é melhor do que a existência, ou que uma vida insossa é melhor que a variedade e a aventura, então esse homem não é uma das pessoas comuns com quem estou falando. Se alguém prefere o nada, nada lhe posso dar.”


*Bernardo Bátiz Vazquez, Advogado, Político e articulista.
Publicado originalmente no site La Jornada Semanal, México, D. F.

Tradução de Diego Guilherme da Silva
 

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