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10.2.12

IV - A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO (4)

IV
A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO (4)


Autor: G.K. Chesterton
Tradução: ©Prof. Carlos Ramalhete
Disponível originalmente a versão preliminar no blog HsJonline

Já mencionei o famoso, ou antes infame, nobre que teria dito que o povo deveria comer capim; talvez tenha sido uma sugestão infeliz para um nobre dar, já que este regime, ao que se saiba, só foi feito por um personagem muito nobre. Talvez, contudo, haja uma simplicidade seria digna de um sultão, ou mesmo de um cacique selvagem, nesta solução; é neste toque de inocência autocrática que eu mais insisti ao tratar das reformas sociais de nossos dias, especialmente da reforma social conhecida como divórcio.

Minha preocupação principal é com o método arbitrário, mais que com o resultado anárquico. Assim como o velho tirano mandaria muitos homens comer capim, o novo tirano faria de muitas mulheres novilhas soltas no pasto. De qualquer modo, para variar um pouco o simbolismo lendário, este rei de conto de fadas nunca parece perceber que a coroa de ouro na cabeça é um símbolo menos, não mais, sagrado e sacramentado que a aliança de ouro no dedo da mulher.

Esta mudança está sendo obtida pelo governo sumário e até mesmo secreto que hoje sofremos. A acusação proordial que lhe fazemos é que ainda que se tratasse realmente de uma emancipação, ela seria uma emancipação apenas na sua forma. Não tratarei detalhadamente do que dizem, pois outros o podem fazer, mas concluo apontando, em grandes linhas e em quatro tópicos, as defesas práticas do divórcio tal como são hoje feitas. Peço apenas ao leitor que repare que elas têm um único ponto em comum: o fato de que todos os argumentos também são usados para defender uma reforma social que as pessoas mais sensatas já estão acusando de ser uma escravidão.

Primeiro: é sintomático que as últimas propostas práticas estejam preocupadas com o caso dos que já estão separados e com os passos que eles deveriam tomar para divorciar-se. Há um espírito, que permeia a nossa sociedade de hoje, que permite à exceção alterar a regra: o exílio afasta o patriotismo, o órfão derruba a paternidade, e até mesmo a viúva ou a ex-mulher pode destruir a posição da mulher.

Percebe-se algo desta tendência na misteriosa e desafortunada nação a quem foi dado tanto mudar, de uma cruzada na Rússia a uma casa de campo em South Bucks. Disseram-nos para tratar o judeu errante como peregrino, enquanto tratamos o cristão errante como vagabundo. E este está pelo menos tentando voltar para casa, como Ulisses, enquanto aquele está, ao que tudo indica, fugindo de casa, como Caim.

O desapegado, isolado, amorfo e deslocado é usado em toda parte como desculpa para alterar o que é comum, comunitário, tradicional e popular. E a alteração é sempre para o pior. A sereia nunca fica mais humana, apenas mais piscosa. O centauro nunca se torna mais humano, apenas mais equino. O judeu, de fato, não consegue internacionalizar a cristandade, só desnacionalizá-la. O proletário não acha fácil tornar-se um pequeno proprietário; é mais fácil tornar-se um escravo.

Assim, o pobre homem que não consegue tolerar a mulher que ele escolheu dentre todas as mulheres do mundo não é encorajado a voltar para ela e tolerá-la, mas sim a escolher outra mulher que ele possa, depois de um tempo, recusar-se a tolerar. E em todos estes casos o argumento é o mesmo: o homem num estado deslocado é infeliz. Provavelmente ele é infeliz por ser anormal, mas se permite que ele desate o laço universal que manteve milhões de outros na normalidade. Por ele ter caído em um buraco, permite-se que ele cave túneis, como um coelho, e desestabilize todo o campo.

Em segundo lugar, como sempre ocorre ao lidar com estas experiências grosseiras, temos um argumento baseado no exemplo de outros países, especialmente de países novos. Assim os eugenistas dizem, solenemente, que houve experiências eugênicas de sucesso nos Estados Unidos. E eles mantém rigidamente a solenidade, ainda que se recusando ardorosamente que falo sério quando lhes digo que uma das experiências eugênicas nos Estados Unidos é uma experiência química, que consiste em transformar um homem negro na forma alotrópica de cinzas brancas. É uma experiência muito eugênica, já que o seu objetivo principal é desencorajar uma mistura interracial indesejada.

Mas eu não gosto da experiência americana, por mais americana que ela seja, e confio e creio que ela não seja nem um pouco tipicamente americana. Ela representa, imagino, apenas um elemento na complexidade da grande democracia, ao lado de outros elementos malignos. Assim, eu não fico nem um pouco surpreso que as mesmas seções estranhas da sociedade que permitem que um ser humano seja queimado vivo também permitam a exaltada ciência da eugenia.

O mesmo ocorre com o tema menos palpitante das leis sobre o álcool; dizem-nos que alguns coloniais primitivos promulgaram a lei seca, que estão agora tentando revogar, exatamente como nos dizem que promulgaram leis de divórcio, que estão agora tentando revogar. No caso do divórcio, pelo menos, o argumento baseado em precedentes distantes desabou sozinho; já há uma agitação a favor de menos divórcios nos Estados Unidos, enquanto na Inglaterra agita-se a favor de mais divórcio.

Digo ainda que, quando se argumenta a partir da necessidade de aumentar a população, seria bom perceber para onde isso conduz. Afinal, é bastante duvidoso que a população aumente devido ao divórcio. Não é, contudo, o que ocorre com a poligamia; na Alemanha, já se defende a poligamia pelo apelo a esta necessidade. Mas devemos ir além da Alemanha, para examinar algo mais remoto e mais repulsivo. A mera população, junto com uma espécie de anarquia polígama, não parecerá uma idéia prática a quem quer que considere, por exemplo, como a Europa pôde manter-se à frente do resto da raça humana, em face das miríades caóticas da Ásia. Se a grande população fosse a pedra de toque do progresso e da eficiência, a China já seria há muito tempo o estado mais progressista e mais eficiente.

De Quincey resumiu esta enormidade em uma frase, talvez, mais impressionante, ou mesmo apavorante, que todas as perspectivas da arquitetura oriental e todos os panoramas dos campos de ópio em meio aos quais ela surge: “o homem, nessas regiões, é uma erva daninha”.

Muitos europeus, preocupados com o jardim do mundo, temeram que por alguma fatalidade futura estas ervas se espalhassem e o sufocassem; nenhum europeu, no entanto, jamais quis que as flores fossem como as ervas. Mesmo se fosse verdade, assim, que afrouxar o laço conjugal levasse necessariamente a um aumento da população, mesmo se isso não fosse negado pelos próprios fatos em muitos países, deveríamos ter uma sólida base histórica para não aceitar este raciocínio. Deveríamos continuar a suspeitar do paradoxo pelo qual abolir a família encorajaria a formação de famílias maiores.

Finalmente, creio que parte da defesa da nova proposta foi considerada um pouco grosseira demais até mesmo por seus defensores; soube inclusive que eles teriam feito emendas modificando o princípio. Elas seriam basicamente, primeiro que o homem deveria comprometer-se a dar um pagamento em dinheiro para a mulher que ele abandonasse e, segundo, que alguma espécie de magistrado trataria do assunto.

Para o meu proósito, basta notar que há algo do sabor inconfundível da sociologia a que resistimos nestes dois tocantes atos de fé: o talão de cheques e o advogado. Muitos dos reformadores matrimoniais da moda ficariam levemente chocados com qualquer sugestão de que uma pobre diarista possa recusar este dinheiro, ou que um juiz bom e justo não tenha o direito de dar este conselho. Afinal, os reformadores do matrimônio são gente muito distinta, com alguas honrosas exceções, e nada se encaixaria mais perfeitamente na sua respeitabilidade bem azeitada que a sugestão de que a traição seja melhor compensada pela indenização, cavalheiros, a pesada indenização paga pelo Sr. Serjeant Buzfuz, ou que a tragédia seja mais bem tratada pela arbitragem tão espiritual do Sr. Nupkins.

Devo ainda acrescentar uma palavra a este esboço apressado dos elementos do caso. Deixei deliberadamente de lado o argumento e o aspecto mais elevados, que percebem no matrimônio uma instituição divina, pela simples razão de que quem crê nisso não crê no divórcio e eu estou discutindo com os que nele crêem. Não os peço que reconheçam o valor do meu credo, ou de qualquer credo; eu poderia até mesmo desejar que eles não me pedissem tão frequentemente que eu reconhecesse algum valor na sua sociedade moderna, plutocrática, venenosa e sem valor algum. Mas se fosse possível mostrar, como creio que seja, que uma visão histórica longa e uma experiência política paciente podem ao menos aucmular evidências científicas sólidas da necessidade vital do voto matrimonial, então não me é possível conceber tributo maior que o de quem, em qualquer fé, afirmou flamejantemente desde o mais negro princípio aquilo que o brilhantismo mais tardio consegue descobrir, lentamente, apenas no final.

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