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10.2.12

III - A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO (3)

III
A SUPERSTIÇÃO DO DIVÓRCIO (3)

Autor: G.K. Chesterton
Tradução: ©Prof. Carlos Ramalhete
Disponível originalmente a versão preliminar no blog HsJonline

Este é um trabalho em curso; antes de atingir sua forma final para publicação impressa, este texto ainda será cotejado novamente com o original, e a ele serão acrescentadas notas explicativas que facilitem sua compreensão pelo leitor atual.

Ele está sendo publicado aqui à medida que o trabalho progride, para possibilitar um acesso ao menos parcial dos leitores brasileiros a esta obra do grande escritor inglês.

Como esta versão é preliminar, pedimos sinceras desculpas por quaisquer enganos e agradecemos toda sugestão e auxílio que nos venham a ser prestados.
Há um bom tempo se vem tentando, de modo curiosamente persistente, esconder o fato de que a França é um país cristão. Certamente há franceses envolvidos na conspiração, e indubitavelmente houve franceses – ainda que eu só saiba dos ingleses envolvidos – na tentativa, derivada daquela, de esconder o fato de que Balzac tenha sido um escritor cristão.
 
Comecei a ler Balzac muito depois de ter lido seus admiradores, e eles nunca me haviam sequer insinuado esta verdade. Eu lera que seus livros eram encadernados em capas amarelas, e seriam “desavergonhadamente franceses”, ainda que me tenha sido sempre algo um pouco nebuloso entender como ser francês poderia ser uma coisa desavergonhada para um francês.

Eu lera a descrição mais verídica do “feiticeiro sujo da Comédie Humaine”, e sobrevi para ver que é verdade. Balzac certamente é um gênio, como os artistas que ele mesmo descreve, daqueles que conseguem desenhar de tal maneira uma vassoura, que se sabe que ela foi usada para varrer o local onde ocorreu um assassinato. Os móveis que Balzac descreve estão mais vivos que os personagens de muitos dramas.

Para isso eu estava preparado, mas não para uma certa assunção espiritual que reconheci imediatamente como sendo um fenômeno histórico. A moralidade de um grande escritor não é a moralidade que ele ensina, mas a que ele considera evidente e que surge como pano de fundo. O tipo católico da ética cristã perpassa os livros de Balzac, exatamente como o tipo puritano da ética cristã perpassa os livros de Bunyan.

Quais seriam as opiniões que defenderiam eu não sei, não mais que eu sei quais seriam as de Shakespeare; mas sei que ambos estes criadores de um mundo de multidões o construíram, comparados com outros escritores mais tardios, baseando-se no mesmo mapa moral fundamental que o do universo de Dante. Não há dúvida possível para quem os teste usando a verdade que mencionei: as coisas fundamentais em um homem não são as coisas que ele explica, mas as coisas que ele se esquece de explicar.

Aqui e ali, contudo, Balzac explica, e explica com aquela concentração intelectual que o Sr. George Moore nitidamente percebe naquele autor quando ele se comporta como teórico. E, outro dia, achei em um dos romances de Balzac esta passagem que – independentemente de sua perfeita adequação ao estado de espírito do Sr. George Moore neste momento – me parece uma profecia perfeita desta época, que poderia perfeitamente ser a epígrafe deste livro: “junto com a solidariedade da família, a sociedade perdeu aquela força elementar que Montesquieu definiu e chamou de 'honra.' A sociedade isolou os seus membros para governá-los melhor, e dividiu para enfraquecer."

Ao longo da nossa juventude e nos anos do pré-Guerra, a crítica corrente seguiu Ibsen, descrevendo o sistema doméstico como uma casinha de bonecas e a dona de casa como uma bonequinha. O Sr. Bernard Shaw forneceu uma variação à metáfora, dizendo que o mero costume mantém a mulher em casa, como mantém o papagaio na gaiola. As peças e histórias deste período pintaram em cores vivas uma mulher semelhante a um papagaio em outros aspectos, coberta de cores vivas, com uma voz irritante, viciada em repetir inúmeras vezes o que se lhe ensinou a dizer. O Sr. Granville Barker, filho espiritual do Sr. Bernard Shaw, comentou em sua peça engenhosa "A Herança de Voysey" que a tirania, a hipocrisia e o tédio seriam os elementos constituintes do “lar inglês feliz".

Deixando de lado o que isto tem de verdade, seria bom insistir que a convencionalidade assim criticada seria ainda mais característica de um lar francês feliz. Não é a casa do inglês, mas a do francês que é seu castelo. Poder-se-ia acrescentar, abordando finalmente a visão ética essencial dos sexos, que a casa do irlandês é o seu castelo, ainda que tenha sido, ao longo dos últimos séculos, um castelo sitiado. De qualquer modo, estas convenções, que se percebe tratarem a domesticidade como algo tedioso, estreito e antinaturalmente manso e submisso, são particularmente poderosas entre os irlandeses e os franceses.

Daí será certamente mais fácil, para qualquer pensador lúcido e lógico, deduzir o fato de que os franceses seriam tediosos e estreitos, e os irlandeses antinaturalmente mansos e submissos. O Sr. Bernard Shaw, irlandês que vive entre os ingleses, pode ser convenientemente tomado como exemplo típico da diferença; e descobrir-se-á indubitavelmente que os amigos políticos do Sr. Shaw, entre os ingleses, serão de um tipo revolucionário mais radical que os que ele encontraria entre irlandeses. Podemos então comparar a mansidão dos fenianos com a fúria dos fabianos.

Este ideal monogâmico mortificante pode até mesmo, num sentido mais amplo, definir e distinguir toda a subserviência rasa de Clare de toda aquela revolta flamejante de Clapham. Tampouco precisamos avançar muito para entender porque as revoluções são desconhecidas na história da França, ou porque elas se sucedem rapidamente na política mais vaga da Inglaterra.
 
Esta rigidez e respeitabilidade certamente serão a explicação desta incapacidade completa para a explosão ou para a experimentação cívica que sempre marcou esta aldeia modorrenta de casinhas trancadas que é a cidade de Paris. Isso vale não apenas para os parisienses, mas também para os camponeses. Vale ainda mais para outros camponeses na grande Aliança. Os estudantes das tradições sérvias nos dizem que a literatura camponesa amaldiçoa de modo especial e singular a violação do matrimônio; e isso deve explicar o ordeiro pacifismo de carneirinhos de que frequentemente se queixa quanto a este povo.

Falando de modo mais claro, há algo claramento errado no cálculo pelo qual se teria provado que a dona de casa seria necessariamente tão servil quanto uma empregada doméstica, ou que visse no homem domesticado alguém sempre gentil como uma rosa ou conservador quanto a Liga da Rosa. São precisamente os mais conservadores acerca da família os revolucionários no tocante ao Estado. Os que são acusados de preconceituosos ou de burgueses tacanhos, devido a suas convenções matrimoniais, são na verdade os mesmos que são acusados pela violência e pelas reviravoltas de suas reformas políticas. Tampouco há qualquer dificuldade em perceber a causa disto.

Trata-se simplesmente de que uma sociedade do tipo do governo, ao lidar com a família, está lidando com algo quase tão permanente e tão capaz de se renovar quanto ele mesmo. Pode haver uma política familiar contínua, assim como há uma política exterior contínua. Em países camponeses a família luta; seria até mesmo possível dizer que a fazenda luta. Não quero simplesmente dizer que, em tempos maus e excepcionais, ela se revolta, ainda que isso seja importante. Era um acontecimento selvagem, mas saudável, quando nas expulsões irlandesas as mulheres jogavam água fervendo das janelas; era parte de uma retirada final ao uso de ferramentas particulares como armas públicas. Este tipo de coisa não é apenas uma briga de faca, mas quase uma briga de garfo e colher.

Talvez fosse neste sentido sombrio que Parnell, naquela piada misteriosa, disse que na Irlanda todo mundo conhecia o Kettle (como talvez devessem, após suas glórias posteriores), e, em um sentido mais geral, é bem verdade que se meter com uma dona de casa acaba nos jogando na água quente. Mas não é destas crises de lutas corporais que eu estou falando, sim de uma pressão permanente e pacífica, que vem de baixo, de mil famílias, contra o quadro geral do governo.

Para isso, é essencial que haja um certo espírito de defesa e de privacidade; nisso o próprio feudalismo tinha razão, ao perceber que qualquer questão de honra era necessariamente uma questão de família. Era verdadeiro o instinto artístico que representou a ancestralidade familiar em um escudo que protege o corpo. O camponês livre tem armas, ainda que não seja armoriais. Ele não tem um escudo de armas, mas tem algo a escudá-lo.

Não vejo porque ele não deveria ter, em uma sociedade mais livre e mais feliz que a atual, ou mesmo que a do passado, um escudo dotado de um belo brazão. Afinal, vale para a ancestralidade o que vale para a propriedade: o erro não é que ela seja imposta aos homens, mas que ela lhes seja negada. Capitalismo demais não significa capitalistas demais, mas capitalistas de menos; e, do mesmo modo, a aristocracia peca não ao plantar uma árvore familiar, mas ao deixar de plantar uma floresta familiar.

De qualquer modo, descobre-se que na prática o cidadão doméstico pode resistir a um cerco, mesmo que o cerco seja feito pelo Estado; isso ocorre porque ele tem alguém ao seu lado nos bons e nos maus momentos – especialmente nos maus momentos. Os defensores da idéia de que o Estado pode conseguir ser dono de tudo e administrador de tudo podem ignorar este argumento o quanto quiserem; é contudo necessário dizer, com todo o respeito, que o mundo, cada vez mais, os ignora. Se fosse possível encontrar uma máquina perfeita e um homem perfeito para operá-la, teríamos um bom argumento para o socialismo de Estado, ainda que o mesmo argumento servisse também para defender o despotismo pessoal.

Creio, contudo, que a maioria das pessoas concorde agora que um pouco desta pressão social de baixo para cima a que chamamos liberdade seja vital para a saúde do Estado. E é ela que não pode ser exercida completamente por indivíduos, apenas por grupos e por tradições. Muitos foram estes grupos; houve os mosteiros, houve as guildas, mas há apenas um tipo, entre todos estes, que todos os seres humanos têm a inspiração onipresente e espontânea de construir para eles mesmos: e este tipo é a família.

Era a minha intenção que este artigo fosse o último dos que alinhavam os elementos deste debate; terei, no entanto, que acrescentar uma curta conclusão acerca da ausência destes elementos nas propostas práticas (ou nada práticas) sobre o divórcio. Aqui, basta dizer que elas sofrem da mórbida doença moderna de sacrificar o normal em benefício do anormal. É fato que a “tirania, hipocrisia e tédio” de que se queixa não são típicos da domesticidade, sim da decadência da domesticidade.

O caso desta queixa em específico, na peça do Sr. Granville Barker, o prova. O ponto crucial de “A Herança de Voysey" é que não havia uma herança de Voysey. A única herança que esta família tinha era uma dívida, bastante desonrosa. Naturalmente, os afetos familiares decaíram quando todo o ideal de propriedade e probidade decaiu; e é pouco o amor, bem como a honra, entre os ladrões.

Ainda resta a provar que eles estariam tão entediados se houvesse uma herança positiva, ao invés de negativa, e se houvessem trabalhado em uma fazenda ao invés de em uma fraude. E a experiência da humanidade aponta na direção oposta.

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