Por Gustavo Corção
Capítulo do livro 'Três alqueires e uma vaca", autoria de Gustavo Corção, Editora Agir, 1961. p. 249-254.
Não se pode dizer, rigorosamente, que Chesterton tenha uma doutrina social. Como já disse atrás ele é mais um homem de idéias do que um doutrinador, e o mérito de sua obra consiste na manipulação dessas idéias, na organização particular e original dos argumentos, a serviço da doutrina clássica. Seu distributismo não é mais do que a doutrina chestertoniano, caracterizando-se pela acentuação de certos pontos e não pelo conteúdo. A idéia central é a da defesa da pequena propriedade e da pequena empresa contra o gigantismo, que já no seu tempo ameaçava a sociedade, e que no nosso tornou-se uma calamidade declarada. Afirmava o direito à posse, não como uma concessão, mas ousadamente, como outorgado por Deus; admitia o capital enquanto indispensável reserva, mas não admitia, de modo algum, o capitalismo, porque a principal característica desse regime a seu ver está na raridade e não na abundância do capital. O capitalismo é uma situação em que quase ninguém possui. Não são a existência e o uso do capital que constituem o capitalismo, é antes a sua quase inexistência ou seu abuso. Por isso, nos tempos de juventude, teve Chesterton a idéia de rejeitar o nome de capitalismo como impróprio e contraditório, propondo em seu lugar o de pauperismo ou proletarismo já que sua principal conseqüência é sem dúvida a difusão da miséria e do proletarismo escravizado. Mas reconheceu que sua denominação dava lugar a certas confusões quando se referia, por exemplo, ao pauperismo de Lorde Northumberland. Voltou á designação corrente; mas de vez em quando, ao longo de sua obra, manifesta uma visível antipatia: “eu não gosto dessa palavra; é feia.”
O capitalismo em si é inteiramente admissível, pertença a ele a um só ou a uma corporação, ao Estado ou a uma sociedade anônima; o capital, em si, existirá sempre por uma razão extremamente simples: o ritmo da produção não é igual ao ritmo do consumo. A economia privada gasta-se numa lixa cotidiana e contínua, pois os homens comem, vestem-se e moram todos os dias. A produção, ao contrário, tem geralmente um ritmo mais largo, que no campo obedece às quatro estações, e nas cidades, à organização industrial. Por isso, uma vez que o homem gasta continuamente, e fabrica descontinuada mente e em prazo longo, torna-se inevitável o acúmulo de reservas, como nas represas e nos açudes. Negar o capital como legítimo instrumento equivale a negar o armazém, o estoque, o saco, a gaveta e o bolso. Equivale a obturar todos esses buracos onde o homem, como a formiga, guarda as reservas de seu trabalho.
O que Chesterton combate é o capitalismo, e combate-o por esse motivo que pode parecer original: porque o capitalismo é, de fato, contrário à idéia de posse. Considerando o capitalismo nas suas origens e causas, estudando o ambiente do liberalismo e apreciando o fenômeno de dissociação entre o conceito de posse e o de responsabilidade moral, concluímos que o capitalismo foi gerado por um desregramento da propriedade e da liberdade; mas tomando o fenômeno tal como hoje se apresenta, considerando-o um fato, observamos que seu caráter atual é heterogêneo com suas origens, o que não é de espantar, tratando-se de um erro prático, que é necessariamente antinômico. O capitalismo, inteiramente desabrochado, tornou-se uma atrofia; a livre competição degenerou em privilégio. À primeira vista não parece existir privilégio, uma vez que a estrutura politicamente democrática assegura a qualquer cidadão as mesmas oportunidades e direitos de despojar os outros cidadãos. Na realidade esse julgamento é falso e resulta de uma confusão entre democracia política e democracia econômica. O privilégio mais ou menos análogo a que distingue dos homens comuns um jogador de xadrez excepcionalmente dotado. Estando o domínio da economia reduzido a uma técnica ou uma arte, e não havendo nenhum compromisso moral, o capitalismo é qualquer coisa como um campeão de bilhar ou de xadrez; é um especialista.
Não insisto na amoralidade ou na imoralidade dos processos que permitem o vertiginoso enriquecimento, mas insisto na especialidade técnica que faz do capitalista um privilegiado. Se o direito de posse é um direito comum não pode ser um privilégio. Logo, o capitalismo como tal, de fato, é uma negação do direito à propriedade privada. Talvez seja negativo o dom principal do moderno herói das finanças; talvez seja uma especial falta de imaginação. Um homem normal (e normalmente dotado de escrúpulos e imaginação) ou recua diante de certas situações, ou distrai-se apreciando o desenho de uma flor: e basta esse pequeno colapso em sua defesa para o obstinado, que não recua ou não se distrai, ponha um pé diante e tome conta de um pequeno pedaço dos três alqueires que o outro não soube guardar. Mas se ganhar é uma técnica, o guarda é também uma arte em que nem todos são capazes.
Eu disse acima que o capitalismo atual está em contradição com suas origens e com a idéia de propriedade. A contradição vai ainda mais longe e chega até o nível da psicologia de seus habilidosos campeões. O capitalista hoje, sendo um dionisíaco, prende-se menos à propriedade concreta do que à ação. O que ele quer acima de tudo é o domínio sobre os homens, o poder conferido marginalmente por um Estado ainda tolerante nessa matéria. Tivesse ele o apetite das coisas concretas, o mal não seria tão grande, porque essas coisas encontram seus limites mais depressa que o poder. Um homem rico não pode comer muito mais do que um pobre; nem muito melhor. E o capitalista moderno é geralmente sóbrio. O pobre, nos delírios de sua miséria, imagina o ricaço com um enorme guardanapo no pescoço, a se fartar das mais esquisitas iguarias; mas na verdade o milionário é um pobre sujeito que tem uma dieta rigorosa e que vive de pílulas. Também não pode morar em muitas casas nem sustentar um harém, porque os incômodos que essas coisas trazem, cedo ou tarde, o impelem a um esquema mais simples de duas ou três casas e de uma só mulher como reserva clandestina, para não cair na excessiva simplicidade da monogamia. O rico, em suma, é um homem de costumes muito mais moderados do que alguns oficiais de gabinete ou subchefes de seção nas repartições públicas.
O capitalismo moderno é um homem empreendedor que muitas vezes acorda cedo, que quase sempre trabalha pelo amor ao trabalho, e que tem a mística das realizações; e é nisso que consiste sua insanidade e sua monstruosidade. O capitalista, em poucas palavras, é um chefe de pequena república socialista enquistada no corpo de uma nação.
O distributismo de Chesterton (que tinha por divisa, entre outras, a fórmula rural que escolhi para o título deste livro, cuja capa foi tirada de um desenho do próprio Chesterton) combatia o capitalismo pelo que esse regime tem de semelhante ao socialismo no que se refere ao direito de propriedade e à dignidade humana. Chesterton pugnava pela pequena propriedade e pela pequena empresa. Recomendava, com grande escândalo de um jornal, que recusou um artigo seu a esse respeito, o boicote sistemático dos grandes armazéns. E tomava como sua uma palavra de Francis Bacon: “A propriedade é como o estrume, só é boa quando espalhada.”
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