Regina Shöpke*
No início do século 20, enquanto a Europa respirava os ares do materialismo e do cientificismo, a voz solitária de um intelectual se erguia em defesa da fé cristã. Tal como um cruzado medieval, o escritor e ensaísta inglês G.K. Chesterton (1874-1936) punha em defesa do cristianismo a sua mais poderosa arma: a pena. Dotado de um grande poder de argumentação, de imaginação e muito senso de humor, Chesterton ficou célebre por seus milhares de escritos e, mais ainda, por sua ardorosa fé. São famosos os debates que travou com intelectuais como Bertrand Russell, H.G. Wells e Bernard Shaw, assim como também é conhecida a sua influência sobre grandes nomes da literatura, como Hemingway, Borges, García Márquez e T.S. Eliot.
Chesterton, que também experimentou na juventude uma fase de ceticismo e descrença, não tinha medo de ser chamado de retrógrado ou anacrônico ao combater com paixão todas as teorias modernas que, segundo ele, estariam levando o homem à decadência. Para ele, o cristianismo era a única saída autêntica. Eis porque ele não se sentia atormentado com os paradoxos da doutrina cristã. Pelo contrário, julgava que só ela era capaz de conciliar as tensões e os contrastes mais profundos da vida e da própria razão.
Mais conhecido pelo famoso detetive que criou, o Padre Brown, e como autor de obras sobre Tomás de Aquino e São Francisco de Assis, é com seu livro Ortodoxia (que está sendo lançado pela editora Mundo Cristão, em homenagem ao centenário da obra, com tradução de Almiro Pisetta), que Chesterton se coloca definitivamente como um apologista do cristianismo. É claro que seu cristianismo está longe de ser aquele que se institucionalizou, embora ele próprio conclua que a ortodoxia seja “o único guardião lógico da liberdade, da inovação e do avanço”, seja lá o que isso queira dizer. Em sua obra, Chesterton sai em defesa de grandes valores como a liberdade, a justiça, a coragem, embora acredite que eles só possuam um eco profundo no mundo cristão (que traria, além desses nobres e antigos valores, outros como a compaixão, a esperança e a alegria). Sim… para ele, a alegria, “que foi a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco segredo do cristão”.
Chesterton parece ter atingido uma rara plenitude de vida e de alegria, mas a maior razão disso parece ter sido o seu espírito vivo, entusiasmado, a sua força de existir. O autêntico religioso é um homem superior, mas não por ser religioso, e sim por ser autêntico. Um homem autêntico é um homem que vive visceralmente o que acredita, é alguém inteiro, que não conhece a mórbida condição dos homens esfacelados, sem direção, sem meta, sem linha reta.
De qualquer modo, independentemente da sua alegria e de sua autenticidade, Chesterton não poderia escapar das armadilhas do “espírito” religioso, dentre elas o dogmatismo e a falta de senso crítico. Afinal, as certezas inquestionáveis podem até dar “um grande sentido à vida humana”, mas não se apóiam em nada além da própria fé. E seus argumentos, por mais inteligentes que sejam, não podem atingir os que não estão mergulhados na mesma lógica.
É num momento de humor que Chesterton diz para deixarmos que os céticos neguem tudo, e que neguem tanto, que um dia neguem a si próprios. No entanto, parece que Chesterton não percebe que os céticos já partem dessa negação ao abandonarem os dogmas e o senso comum. Nietzsche, apesar das críticas que Chesterton faz a ele (algumas um tanto deselegantes), está certo quando diz que a religião tem a função de apaziguar, de consolar o espírito e, nesse caso, se opõe radicalmente à filosofia.
Pois bem, dentre os muitos assuntos tratados por Chesterton nessa sua “autobiografia” espiritual, está a questão do pecado que, para ele, “constitui a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada”. Aqui ele não se dirige apenas aos descrentes, mas aos “novos teólogos” que negavam a existência do pecado original, alegando que não se pode pensar em pecado num mundo criado por Deus. Chesterton reage, com veemência, dizendo que é evidente que Deus não tem pecados, mas os homens têm, e muitos… E diz mais: esses novos teólogos podem negar o pecado, mas ainda não negaram “a existência do asilo para lunáticos”. E é aqui que ele mostra a força de sua argumentação, direcionando a questão para o âmbito da loucura humana. No fim de tudo, é a própria razão que é acusada de ser a responsável pela desrazão. Ele diz enfaticamente: “O que gera a insanidade é exatamente a razão.”
Nesse ponto, Chesterton nada mais faz do que retomar o repúdio dos românticos à idéia de que a razão é a única capaz de dirigir o homem no caminho da felicidade e do bem-estar geral. É o racionalismo radical dos iluministas que Chesterton combate, mas também tudo aquilo que nasceu em conseqüência disso. Digamos que, para ele, foi essa razão arrogante que levou o homem a dissolver-se, ou a dissolver seus parâmetros, valores. Nesse momento, Chesterton lembra menos um cruzado e mais um cavaleiro andante, um Dom Quixote da fé querendo a todo custo proteger seu mundo imaginário. Não deixa de ser interessante, no entanto, observar como ele combate a razão usando as armas mais poderosas da própria razão: a lógica, o discurso bem articulado, a força da persuasão.
Enfim, para lá de todas as questões, a verdade é que Chesterton, como Voltaire, acredita que o homem não pode viver sem a idéia de um Deus transcendente. Porém, indo ainda mais longe, ele defende que o homem não pode viver sem o Deus cristão. Seja como for, e mesmo que haja algo de sublime nas intenções de Chesterton, não se pode inverter a marcha da razão com a alegação de que é “melhor” a religião do que o materialismo puro ou com a afirmação de que apenas a tradição do pecado original pode realmente “derrubar o próspero opressor” (e aqui ele está se referindo a todas as teorias científicas e filosóficas vigentes, o que abrange o socialismo, o relativismo, o determinismo, mas também o capitalismo e o liberalismo, o ceticismo e o ateísmo). Não se trata, no entanto, de uma escolha racional, e sim afetiva. E, além disso, é pouco inocente defender a fé com o auxílio da razão.
Em suma, Chesterton está convicto de que a liberdade e a alegria verdadeiras só são possíveis dentro do cristianismo e procura provar isso em sua Ortodoxia. Para tal, ele não mede esforços no ataque a todos os adversários da religião e, sobretudo, aos do cristianismo. É claro que talvez só consiga convencer os que já estão convencidos ou os que estão abertos à religião. Mas seu livro tem valor por várias razões: é franco, direto e põe em movimento as idéias. No mais, deve interessar sobretudo aos cristãos que, segundo o próprio Chesterton, nem sempre vivem na carne a sua fé. De fato, se a alegria é mesmo o grande segredo dos cristãos, está na hora de ela se manifestar.
*Regina Schöpke é doutora em filosofia, medievalista e tradutora. Chesterton, o Dom Quixote da fé. Publicado no O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 fev. 2008.
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