Retirado do livro "Outras Inquisições", de autoria de Jorge Luis Borges
Disponível para leitura e download aqui.
Because He does not take away
The terror from the tree...
CHESTERTON: A Second Childhood.
Edgar Allan Poe escreveu contos de puro horror fantástico ou de pura bizarrerie; Edgar Allan Poe foi o inventor do conto policial. Isso não é menos certo que o fato de ele não ter combinado os dois gêneros. Não impôs ao cavalheiro Augusto Dupin a tarefa de precisar o antigo crime do Homem das Multidões ou de explicar a aparição que fulminou o mascarado príncipe Próspero na câmara negra e escarlate. Chesterton, ao contrário, prodigalizou com paixão e felicidade esses tours de force. Cada um dos textos da Saga do padre Brown apresenta um mistério, propõe explicações de tipo demoníaco ou mágico para, no fim, substituí-las por outras que são deste mundo. A mestria não esgota a virtude dessas breves ficções; nelas creio notar uma cifra da história de Chesterton, um símbolo ou espelho de Chesterton. A repetição de seu esquema ao longo dos anos e dos livros (The Man Who Knew Too Much,The Poet and the Lunatics, The Paradoxes of Mr. Pond) parece confirmar que se trata de uma forma essencial, não de artifício retórico. Estes apontamentos são uma tentativa de interpretar essa forma.
Antes, convém reconsiderar alguns fatos de excessiva notoriedade.
Chesterton foi católico, Chesterton acreditou na Idade Média dos pré-rafaelistas ("Of London, small and white, and clean”), Chesterton pensou, como Whitman, que o mero fato de ser é tão prodigioso que nenhuma desventura deve eximir-nos de uma espécie de cômica gratidão. Tais crenças podem ser justas, mas o interesse que despertam é limitado; supor que elas esgotam Chesterton é esquecer que um credo é o último termo de uma série de processos mentais e emocionais e que o homem é toda a série. Neste país, os católicos exaltam Chesterton, os livre-pensadores o negam. Como todo escritor que professa um credo, Chesterton é julgado por causa disso, é reprovado ou aclamado por isso. Seu caso é semelhante ao de Kipling, que as pessoas sempre julgam em função do Império Britânico.
Poe e Baudelaire, assim como o Urizen atormentado de Blake, propuseram-se criar um mundo de espanto; é natural que sua obra seja fértil em formas do terror. Creio que Chesterton não teria tolerado a imputação de ser um urdidor de pesadelos, um monstrorum artifex (Plínio, XXVIII, 2), mas ele indefectivelmente incorre em freqüentes imagens atrozes. Pergunta se porventura um homem tem três olhos, ou um pássaro três asas; fala, contra os panteístas, de um morto que descobre no Paraíso que os espíritos dos coros angelicais têm sempre seu próprio rosto[1]; fala de uma prisão de espelhos; fala de um labirinto sem centro; fala de um homem devorado por autômatos de metal; fala de uma árvore que devora os pássaros e que, em vez de folhas, dá penas; imagina (The Man Who Was Thursday, VI) que nos confins orientais do mundo talvez exista uma árvore que já é mais, e menos, que uma árvore, e, nos ocidentais, algo, uma torre, cuja arquitetura, por si só, é malvada. Define o próximo pelo distante, e até pelo atroz; se fala dos próprios olhos, nomeia-os com palavras de Ezequiel (1, 22), "um terrível cristal"; se da noite, aperfeiçoa um antigo horror (Apocalipse 4, 6) para chamá-la "um monstro feito de olhos". Não menos ilustrativa é a narração How I Found the Superman. Chesterton fala com os pais do Super-Homem; perguntados sobre a beleza do filho, que não sai de um quarto escuro, estes lembram-lhe que o Super-Homem cria seu próprio cânone e por ele deve ser medido ("Nesse plano, ele é mais belo que Apolo. Visto de nosso plano inferior, claro que..."); depois admitem que não é nada fácil estreitar sua mão ("O senhor sabe; a estrutura é muito outra"); depois são incapazes de precisar se ele tem cabelo ou penas. Morre vítima de uma corrente de ar, e alguns homens retiram um ataúde que não tem forma humana. Chesterton relata essa fantasia teratológica em tom de zombaria. Tais exemplos, que seria fácil multiplicar, provam que Chesterton se defendeu de ser Edgar Allan Poe ou Franz Kafka, mas que algo no barro de seu eu propendia ao pesadelo, algo secreto, cego e central. Não por acaso ele dedicou suas primeiras obras à defesa de dois grandes artífices góticos: Browning e Dickens; não por acaso repetiu que o melhor livro saído da Alemanha era o dos contos de Grimm. Denegriu Ibsen e defendeu (talvez indefensavelmente) Rostand, mas os Trolls e o Fundidor de Peer Gynt eram da mesma matéria de seus sonhos, "the stuff his dreams were made of". Esse desacordo, essa precária sujeição de uma vontade demoníaca definem a natureza de Chesterton. Emblemas dessa guerra são, para mim, as aventuras do padre Brown, cada uma das quais pretende explicar, mediante a pura razão, um fato inexplicável. Por isso afirmei, no parágrafo inicial desta nota, que as ficções de Chesterton eram cifras de sua história, símbolos e espelhos de Chesterton. Isso é tudo, com a ressalva de que a "razão" à qual Chesterton subordinou suas imaginações não era exatamente a razão, mas a fé católica, ou seja, um conjunto de imaginações hebréias subordinadas a Platão e a Aristóteles.
Recordo duas parábolas opostas. A primeira consta no primeiro volume das obras de Kafka. E a história do homem que pede para ter acesso à lei. O guardião da primeira porta responde que dentro há muitas outras e que não há sala que não esteja custodiada por um guardião, cada qual mais forte que o anterior. O homem senta-se para esperar. Passam-se os dias e os anos, até que ele morre. Em sua agonia, pergunta: "Será possível que nos anos desta minha espera ninguém além de mim tenha querido entrar?". O guardião responde: "Ninguém quis entrar porque só a ti se destinava esta porta. Agora vou fechá-la". (Kafka comenta essa parábola, complicando-a ainda mais, no nono capítulo de O Processo.) A outra parábola consta no Pilgrim’s Progress, de Bunyan. As pessoas olham com cobiça um castelo defendido por muitos guerreiros; junto à porta há um guardião com um livro para registrar o nome de quem for digno de entrar. Um homem intrépido achega-se ao guardião e diz: "Anote meu nome, senhor". Depois tira sua espada e arremete contra os guerreiros e recebe e devolve feridas sangrentas, até abrir passagem em meio ao fragor e entrar no castelo.
Chesterton dedicou a vida a escrever a segunda parábola, mas algo nele sempre tendeu a escrever a primeira.
1Amplificando um pensamento de Attar ("Em toda a parte só vemos Teu rosto"), Djalal al-Din Rumi compôs alguns versos, depois traduzidos por Rückert (Werke, IV, 222), em que se diz que nos céus, no mar e nos sonhos há Um Só e em que se louva esse único por ter reduzido à unidade os quatro briosos animais que puxam a carruagem dos mundos: a terra, o fogo, o ar e a água.
2 Não a explicação do inexplicável, e sim do confuso é a tarefa que, em geral, os autores de romances policiais se impõem.
3 A noção de portas atrás de portas, que se interpõem entre o pecador e a glória, aparece noZohar. Ver Glatzer: In Time and Eternity, 3O; também Martin Buber: Tales of the Hasidim, 92.
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