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Livraria virtual 'Chesterton Livros'

1.12.10

O que pensamos a respeito

Gilbert Keith Chesterton
Traduzido por Antonio Emilio Angueth de Araujo
Capítulo do livro The Thing (A Coisa), publicado em 1929

Estava passando os olhos outro dia numa revista semanal, que é supostamente da área da cultura popular; neste caso em particular, da área da ciência popular. Na prática, ela oferece principalmente o que seus leitores otimistas chamam de “pensamento moderno” e o que mais comumente chamamos de modernismo. A revista não é, de modo algum, injusta ou exclusiva a pontos de vistas opostos; mais de uma vez ela me permitiu réplicas a artigos nela contidos; e lendo a edição em questão, meus olhos foram atraídos pelo meu próprio nome.

Ele apareceu num artigo sobre as doutrinas religiosas do Sr. Arnold Bennett. A proeminência desse nome na mídia em conexão com esses assuntos é um dos impressionantes mistérios do moderno jornalismo. Tenho não somente uma grande admiração pelo seu gênio artístico, mas também, de muitas formas, aprecio fortemente a personalidade humana do Sr. Arnold Bennett. Gosto de sua vitalidade e desprezo pelo desprezo. Gosto de sua humanidade e sua compassiva curiosidade sobre tudo que é humano. Gosto daquela essencial ausência de esnobismo que o torna capaz inclusive de se simpatizar com os esnobes. Mas falar das crenças religiosas do Sr. Arnold Bennett parece-me exatamente como falar das aventuras de caça às raposas do Sr. Bernard Shaw ou da coleção de vinhos raros do Sr. Pussyfoot Johnson,[1] das visões celestiais do Sr. Arthur Keith[2], ou dos votos monásticos de Sr. Bertrand Russel. O Sr. Arnold Bennett nunca ocultou, me parece, o fato essencial de que ele não tem crenças religiosas; como são estas entendidas na língua inglesa da forma que a aprendi. Que ele tenha vários estimáveis sentimentos e simpatias morais não duvido por um momento. Mas a questão do Sr. Arnold Bennett é, no momento, um parêntesis. Menciono-o aqui meramente porque estava no tal artigo em que fui mencionado; e confesso que considerei a referência um pouco estranha. Não surpreenderá o leitor o fato de que o autor considerou-me menos modernista que o Sr. Arnold Bennett. Minhas crenças religiosas não são tão puras, virginais e inocentes, mas foram desfiguradas com afirmações definitivas sobre várias coisas. Mas o autor declarava ter descoberto algo duvidoso e misterioso sobre minha atitude; e o que me mistifica é sua mistificação. Ele delicadamente sugere que há mais coisas em mim do que os olhos podem ver; coisas interiores, que vão além daqueles espetáculos papistas, mas que é inútil submeter-me a uma vivissecção para descobrir o segredo. Ele diz: “O Sr. Chesterton não quer nos esclarecer; pelo que sabemos, ele é modernista o bastante em seus próprios pensamentos.”

Ora, seria um pouco irritante se um ateu dissesse, de algum inofensivo cristão protestante como General Booth[3]: “Pelo que sabemos, ele é ateu o bastante em seus próprios pensamentos.” Podemos mesmo arriscar perguntar como o ateu pôde formar alguma noção sobre o que General Booth pensou, em tão completa contradição com tudo o que ele dissera. Ou eu mesmo, por outro lado, poderia parecer descortês se sugerisse que o Sr. Arnold Bennett pudesse estar ocultando sua conversão por covardia; e expressasse tal coisa da seguinte forma: “O Sr. Bennett nunca nos dirá a verdade sobre isso; pelo que sabemos, ele é papista o bastante em seus próprios pensamentos.” Posso ser inclusive interrogado sobre como chegara a tais suspeitas sobre os pensamentos secretos do Sr. Arnold Bennett; se escondera sob sua cama e ouvira-o sussurrar orações em latim em seus sonhos, ou contratara um detetive particular para verificar a existência de seu cilício e de suas relíquias ocultas. Pode-se perceber que, até que eu produza um caso PRIMA FACIE para minhas suspeitas, seria mais cortês supor que as opiniões do Sr. Bennett fossem o que ele próprio disse que são. E se eu fosse sensível a tais coisas, poderia fazer uma solicitação bastante incisiva de que as pessoas que não soubessem nada a meu respeito, exceto o que eu digo, acreditasse, para a conveniência geral, no que eu digo. A respeito do assunto modernismo, de qualquer forma, nunca houve a mínima dúvida ou dificuldade sobre o que digo. Pois, de fato, eu sempre tive um forte desprezo intelectual pelo modernismo, mesmo antes de acreditar realmente no catolicismo.

Mas eu pertenço, como um produto da evolução biológica, à ordem dos paquidermes. E não sou movido minimamente por qualquer irritação; mas somente por uma extrema curiosidade a respeito da razão real para aquele notável ponto de vista. Sei que o autor não quis dizer nada ofensivo; estou muito mais interessado em saber o que ele quis dizer. E a verdade é que, sob meu ponto de vista, encontra-se escondida naquela frase curiosa e enigmática toda a controvérsia moderna sobre o catolicismo. O que o homem quis realmente dizer foi que: “Mesmo o podre e velho Chesterton deve pensar; ele não pode ter deixado de pensar completamente; deve haver alguma função cerebral em atividade a fim de preencher as horas vagas de sua vida equivocada e inútil; e é óbvio que se um homem começa a PENSAR, ele só pode pensar mais ou menos na direção do modernismo.” Os modernistas pensam realmente assim. Esta é a questão. Esta é a piada.

O que temos realmente de enfiar a marteladas dentro da cabeça desses indivíduos é que um homem pode pensar cada vez mais profundamente sobre o catolicismo e não sobre as dificuldades do catolicismo. Temos de fazê-los ver que a conversão é o começo de uma vida intelectual ativa, frutífera, progressista e mesmo venturosa. Pois ESTA é a coisa em que eles não podem presentemente acreditar. Eles honestamente dizem a si mesmos: “O que ele pode estar pensando, se não estiver pensando sobre os Erros de Moisés, segundo as descobertas do Sr. Fulano de Almeida, ou ousadamente denunciando todos os terrores da Inquisição que existiam dois séculos atrás na Espanha?” Temos de explicar, de alguma forma, que os grandes mistérios como o da Santíssima Trindade ou do Santíssimo Sacramento são os pontos iniciais para reflexões muito mais estimulantes, sutis e mesmo individuais, que comparado com eles, todo esse blablablá cético é tão ralo, frívolo e poeirento quanto uma maldosa matéria sensacionalista numa pequena cidade da Nova Inglaterra. Assim, aceitar o Logos como uma verdade é estar na atmosfera do absoluto, não somente com São João Evangelista, mas com Platão e todos os grandes místicos do mundo. Aceitar o Logos como um “texto” ou uma “interpolação” ou “desenvolvimento” ou uma palavra morta num documento morto, usada apenas para dar, em rápida sucessão, umas seis datas diferentes para aquele documento, é estar totalmente num plano inferior de vida humana; é estar se debatendo por um mero sucesso negativo; mesmo que fosse realmente um sucesso. Exaltar a Missa é entrar num suntuoso mundo de idéias metafísicas, que iluminam todas as relações de matéria e mente, de carne e espírito, das mais impessoais abstrações, tanto quanto das mais pessoais afeições. Planejar desdenhar e minimizar a Missa com fugazes comentários sobre o que ela tem em comum com Mitras e as Religiões de Mistérios, é estar completamente tomado por um espírito apequenado e pedante; não somente um espírito inferior ao catolicismo, mas inferior mesmo comparado ao mitraismo.

Como disse antes, é muito difícil dizer como podemos atacar essas coisas. Nós e nossos críticos falamos em duas línguas diferentes; assim, os próprios nomes com que descrevemos as coisas do lado de dentro significam coisas totalmente diferentes nas etiquetas que eles pregam na parede do lado de fora. Não raro se disséssemos as grandes coisas que temos a dizer, elas soariam como as pequenas coisas que eles nos acusam de dizer. Um processo filosófico só pode começar pelo fim correto; e eles tomam tudo pelo fim errado. Mas estou disposto a pensar que devemos começar contestando uma frase, ou seqüência de palavras, muito comum; uma coisa que se tornou um slogan e uma legenda; ou, na linguagem popular ordinária, uma manchete. Porque os jornalistas a repetem incessantemente, e chama para ela atenção pelo fato de repeti-la, talvez possamos chamar a atenção negando-a.

Quando um jornalista diz, pela milésima vez, “Uma religião viva não é feita de tediosos e empoeirados dogmas, etc.”, devemos interrompê-lo com um grito e dizer, “Ei – você está errado de início.” Se ele se permitir perguntar o que são os dogmas, descobrirá que são precisamente os dogmas que estão vivos, que são inspiradores, que são intelectualmente interessantes. Ardor, caridade e unção são admiráveis como flores e frutos; se você está interessado no princípio vivo, você deve estar interessado na raiz ou na semente. Em outras palavras, você deve estar inteligentemente interessado na afirmação da qual tudo começou; mesmo se for apenas para negá-la. Mesmo se o crítico não puder concordar com o católico, pode chegar a perceber que são algumas idéias a respeito dos Cosmos que o faz católico. Ele pode perceber que o fato de ser cósmico desta forma, e o católico daquela forma, é o que o faz diferente das outras pessoas; e o que o faz, no mínimo, uma figura, de nenhuma forma desinteressante, da história humana. Ele não chegará a nenhum lugar perto disto sentimentalizando contra o sentimento católico, ou pontificando contra os pontífices católicos. Ele deve tomar as idéias como idéias; e então descobrirá que as idéias mais interessantes de todas são aquelas que os jornais denigrem como dogmas.

Por exemplo; a doutrina da Dupla Natureza de Cristo é interessante, no sentido mais genuíno; deve ser interessante para qualquer um que a entenda, muito antes de nela acreditar. Ela tem o que se pode chamar, com toda a reverência, de um interesse estereoscópico; o interesse de ter dois olhos na cabeça que criam um objeto, de ter dois ângulos num triângulo que determinam o terceiro. A antiga seita monofisista declarava que Cristo tinha apenas a natureza divina. A nova seita monofisista declara que Ele tinha apenas a natureza humana. Mas não é um trocadilho ou um ardil, mas uma verdade, dizer que o monofisista é por natureza monótono. Em qualquer de suas duas formas, ele está naturalmente num mesmo tom. A questão da verdade histórica objetiva é uma outra questão, que não quero discutir aqui, embora esteja pronto a discuti-la em qualquer lugar. Estou discutindo sobre estímulo intelectual e o ponto inicial do pensamento e da imaginação. E estes, como todas as coisas viventes, nascem da conjunção de duas, e não de uma apenas. Assim, leio com simpatia, mas uma simpatia que não vai além do sentimento, os estudos dos modernos monofisistas sobre a vida de um limitado e meramente mortal Jesus de Nazaré. Eu respeito o respeito deles; admiro sua admiração; sei que tudo que dizem sobre a grandeza humana e o gênio religioso é verdade, até certo ponto. Mas esse ponto está sobre uma linha somente; e não tem o poder de convencimento que têm as coisas que podem convergir. E então, depois de ler tal tributo a um mestre da ética, à maneira dos Essênios, talvez eu vire uma outra página do mesmo livro, ou de um similar; e me depare com alguma frase referente a uma religião real, embora pagã; talvez com algum suposto paralelo com o que é chamado um Cristo pagão. Já vi escrito, mesmo que apenas a respeito de Atis e Adonis, “Havia uma concepção de que o deus se sacrificou por si mesmo.” O homem que consegue ler estas palavras sem um arrepio está morto.

O arrepio é mais forte em nós, claro, porque está ligado a um fato e não a uma fantasia. Nesse sentido, não admitimos que haja nenhum paralelo com as antigas lendas pagãs, como sugerem os livros dos modernos pagãos. E, de fato, estamos seguros em afirmar que seja apenas senso comum dizer que não pode haver um paralelo integral entre o que foi admitidamente um mito ou mistério e o que foi admitidamente um homem. Mas a questão aqui é que a verdade oculta mesmo nos mitos e mistérios está completamente perdida se nos limitamos à consideração de um homem. Nesse sentido, há uma verdade irônica e inconsciente nas palavras dos modernos pagãos, que cantam que “o pagão nos sobrevive e enfrenta”, e que “nossas vidas e nossos ardentes desejos são duas coisas diferentes”.[4] Isso é verdade em relação aos modernistas, mas não é verdade em relação a nós, que encontramos simultaneamente a realização de um desejo ardente e a história de uma vida. É inteiramente verdade que houve, em muitos mitos pagãos o débil prenúncio dos mistérios cristãos; embora ao dizer isso admitimos que os prenúncios eram sombras.[5] Mas quando todo o parentesco imaginário tiver sido explorado ou permitido, não será verdade que a mitologia possa se elevar à altura da teologia. Não é verdade que um pensamento tão ousado ou tão sutil como este tenha passado pela mente que criou os centauros e os faunos. Nas mais espantosas e gigantescas das fantasias épicas primitivas não havia nenhuma concepção tão colossal quanto um ser que fosse tanto Zeus quanto Prometeu.

Mas apenas faço uma advertência aqui, não a fim de discutir sua verdade contra aqueles que não acreditam nela, mas a fim de insistir em seu intenso interesse intelectual para aqueles que nela acreditam. Desejo apenas explicar àqueles que se interessam, que uma mente repleta com a verdadeira concepção dessa Dualidade tem muito que pensar e não necessita escavar deuses mortos para desacreditar o Homem Eterno. Não há necessidade que eu seja modernista em meus próprios pensamentos, ou monofisista em meus próprios pensamentos; pois penso que essas idéias são muito mais tolas e triviais que as minhas próprias. Nas belas palavras da canção de amor em “The Wallet of Kai Lung”, uma das poucas, verdadeiras e psicológicas canções de amor do mundo: “Esta pessoa insignificante e universalmente desprezada prefere sem hesitação seus próprios pensamentos aos dos outros.”[6]

Muitos outros exemplos poderiam ser dados. Esta pessoa (se me for permitido uma vez mais usar a graciosa locução chinesa) logo exauriria o entusiasmo de descobrir que Maria e Maia começam, ambas, com um M, ou que a Mãe de Cristo e a Mãe do Cupido foram ambas representadas por mulheres. Mas sei que nunca devo exaurir a profundidade daquele insondável paradoxo, que é definido tão audaciosamente no próprio título de Mãe de Deus. Sei que há conexões de pensamentos e imaginação muito mais profundas, saudáveis e libertadoras naquele enigma do perfeitamente humano ter tido, uma vez, uma autoridade natural sobre o sobrenaturalmente divino, do que em qualquer tipo de identificação iconoclasta que assimila todas as imagens sagradas achatando todas as suas faces. No momento em que Cristo é feito igual a Osíris, pouco sobra de ambos; mas Cristo, como concebido pela Igreja Católica, é uma combinação complexa, não de duas coisas irreais, mas de duas coisas reais. Da mesma forma, um Astarot[7] exatamente igual a uma madona de Rafael, ou vice versa, pareceria uma visão algo monótona; enquanto que há algo que é, no sentido mais intelectual, único sobre a concepção da THEOTOKOS. Em resumo, em toda essa mera unificação das tradições, verdadeira ou falsa, há algo que pode ser muito simplesmente descrito como tola. Mas os dogmas não são tolos. Mesmo os que são chamados de finas distinções doutrinais não são tolos. São como as delicadas intervenções cirúrgicas; que separam nervo de nervo, mas para promover a vida. É muito fácil achatar tudo num raio de quilômetros com dinamite, se seu objetivo é promover a morte. Mas tal como o fisiologista está tratando com tecidos vivos, assim também o teólogo está tratando com idéias vivas; e se ele faz uma distinção entre elas, é naturalmente uma finíssima distinção. É costume – que embora sendo deste nosso tempo, já é um costume que exala mau cheiro – alegar que os gregos ou italianos que discutiam sobre a Trindade ou sobre os Sacramentos estavam dividindo fios de cabelo ao meio. Não sei se dividir fios de cabelo é mais triste do que tingir o cabelo, na tentativa vã de imitar os cabelos dourados de Freia ou os cabelos negros de Cotito. A subdivisão de um fio de cabelo nos diz, pelo menos, sobre sua estrutura; enquanto que sua mera descoloração não nos diz nada. A Teologia nos introduz na estrutura das idéias; enquanto que o sincretismo teosófico meramente elimina todas as cores dos coloridos contos de fada do mundo. Mas meu único propósito aqui é tranqüilizar o gentil cavalheiro que estava preocupado com a secreta doença da modernidade que estaria corroendo minha mente, de resto, vazia. Apresso-me ardentemente em explicar que estou muito bem, obrigado; e que tenho muitas coisas em que pensar sem cair na loucura baconiana de paralelos pagãos, ou no estabelecimento de conexões entre a lenda do touro morto por Mitras e a “música que matou a vaca.”[8]


[1] William Eugene “Pussyfoot” Johnson, americano e grande defensor da proibição da venda de bebidas alcoólicas. Como autoridade fiscalizadora ele ganhou o apelido de “pussyfoot”, passo de gato, por sua discrição felina ao perseguir suspeitos de desobediência à lei seca. (N. do T.)

[2] Ver A Máscara do Agnóstico. (N. do T.)

[3] William Booth, metodista inglês e fundador do Exército da Salvação, do qual era General. (N. do T.)

[4] Do poema Dolores, do poeta vitoriano Alegernon Charles Swinburne (1837 – 1909), cujos temas eram sadomasoquistas, lésbicos e anti-religosos. (N. do T.)

[5] Prenúncio em inglês é “foreshadowing” e sombra é “shadow”. Daí a observação de Chesterton. (N. do T.)

[6] “The Wallet of Kai Lung” é um livro de contos de Ernst Bramah, que teve sua primeira edição em 1900 e fez muito sucesso. Kai Lung é um contador de histórias da antiga China. (N. do T.)

[7] Em demonologia, Astarot é o Príncipe do Inferno. (N. do T.)

[8] Referência a uma antiga canção folclórica que diz: “Havia um velho homem, e ele tinha uma velha vaca. \ Mas ele não tinha ração para lhe dar, \ Então ele pegou seu violino e tocou-lhe uma música – \ Considere, boa vaca, considere, \ Não é tempo da grama crescer. \ Considere, boa vaca, considere.’ ” Aqui Chesterton contrapõe o mitraismo à caridade cristã. Veja Tg 2, 15-16. (N. do T.)

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