* Do Pessimismo ao Otimismo
G.K. Chesterton
(1874-1936)
**Agnes de La Gorce
UMA LEMBRANÇA DA INFÂNCIA
Um dia, em Londres, um pequeno que passeava com seu pai via surgir um estranho personagem:
“Uma multidão tinha se reunido perto de um portão estreito e sombrio. Eu já conhecia as multidões: sabia que gritam e se empurram. Mas, não estava preparado para a cena que assisti. Um movimento se espalhou, e eis todos estes excêntricos de joelhos sobre o pavimento! Eu nunca tinha visto isso, exceto no interior das Igrejas. Minha atenção redobrou. Uma pequena viatura parou diante desta porta: saiu um espectro vestido de chamas. Minha pobre caixa de lápis de cores não poderia me fornecer uma tal riqueza de escarlate.
E o personagem avançava com suas vestes espantosas, como uma nuvem ao crepúsculo, bendizia a massa elevando sobre ela seus dedos longos e delicados.
Eu olhava para seu rosto e meu espanto crescia, porque esta face tinha a palidez morta do marfim; era velha, sulcada de riscos, um montão de nervos, ossos e músculos, com olhos cavos perdidos a sombra; não era feio, era talvez a ruína de uma grande beleza. Uma face tão extraordinária que eu esquecia a bizarra vestimenta escarlate.
Nós passamos e meu pai disse: “sabes quem era? O cardeal Manning”.
Assim, em suas Memórias, Gilbert Keith Chesterton evocou esta aparição, com todo o romantismo reconstituído de sua infância. Este dignitário da misteriosa Igreja Romana parecia-lhe pertencer ao mundo das fábulas. E, entretanto, cerca de meio século mas tarde, na catedral católica onde Manning tinha oficiado e pregado com tanto brilho, seria pronunciação o elogio fúnebre desta criança que, nascida no anglicanismo e transformado em escritor de grande renome, colocou sua verve e sua potência intelectual a serviço da fé católica. Por que caminhos longos e sutis?
CIDADÃO DE LONDRES
Nascido a 29 de maio de 1874, Gilbert Keith Chesterton era de Londres. Em sua família estabelecida em Kensington, o mesmo negócio imobiliário se transmitia de pai a filho havia várias gerações. Menos sólidas que esta empresa familiar, as crenças hereditárias se diluíam em agnosticismo, apesar do respeito às aparências e à forma. O humor de Chesterton tratará um dia, de um excelente homem de suas relações, que do domingo de manhã ao domingo de tarde passeava com o livro de missa ostensivamente debaixo do braço, mas não entrava em nenhuma Igreja! É para dar o exemplo, dizia ele...
Bem ao contrário de uma criança prodígio, Chesterton descreveu com ternura – que não excluiu uma leve e doce ironia – os burgueses da capital, solidamente enraizados em suas profissões, seu bairro, sua honra exata, seu contentamento em ser o que eram, nem mais nem menos. De seu avô paterno, traçou este delicado esboço:
“Era um velho bonito, de cabelos brancos, barba branca, maneiras que lhe conferiam uma solenidade bem em harmonia com os usos e sentimentos de outrora. Ele conservava o velho costume cristão de cantar depois das refeições, e não era raro ouvi-lo cantando pomposas canções, que datavam da época de Trafalgar ou de Waterloo”...
UMA PALAVRA DO AVÔ
Bem diferente, o avô materno. Convertido, Chesterton exprimirá seu reconhecimento para com este Escocês, antigo pregador wesleiano, que não devia querer muito bem à Igreja Romana. Um dia em que jovens filósofos criticavam em sua presença as fórmulas de ação de graças inscritas no Prayer-book, o velho evangelista – tão avançado em idade que quase nunca saía de seu silêncio – pronunciou lentamente estas palavras: “Quanto a mim, agradeceria a Deus por me haver criado, mesmo se soubesse da perdição de minha alma.” Seu neto jamais se esqueceria deste ato de fé tocante, na bondade da vida.
Descobrindo o segredo essencial de sua evolução religiosa, Chesterton confessa em sua Autobiografia que o otimismo que irradia de sua obra, longe de ser uma disposição natural, foi uma conquista sobre a desesperança, como o resultado de um combate vitorioso:
“Na verdade, a história de meu otimismo é uma aventura estranha. Mergulhado nos mais profundos abismos do pessimismo contemporâneo, experimentava um sobressalto de revolta; eu queria repelir o demônio, livra-me do pesadelo. Mas enquanto eu refletia, tirando minhas idéias de mim mesmo, sem ajuda filosófica ou religiosa, eu fabricava uma crença mística rudimentar: a idéia de que a vida, mesmo reduzida à sua expressão mais primitiva, era suficientemente extraordinária para ser maravilhosa. Todas as coisas eram magníficas em relação ao nada. Se a luz do dia não era mais que um sonho, era por certo um sonho luminoso e não o pesadelo de uma noite...
De fato, meu estado de espírito aproximava-se do de meu avô, o puritano, quando dizia que agradeceria a Deus por tê-lo criado, mesmo que sua alma se devesse perder. Assim, ligava-me à religião, por tênue fio de gratidão”.
A CRISE JUVENIL
Por volta de seu vigésimo aniversário ocorreu a crise que abalou seu agnosticismo inicial e o encaminhou à conversão da religião anglicana. Ele terminara seus estudos no colégio Sant-Paul. Hesitava entre uma carreira literária e uma carreira artística. Não cessará de manejar o lápis, mas contentar-se-á com ilustrar seus livros com esboços.
De fato, nenhuma vocação se afirma com mais brilho que a sua: ele é polemista nato e, nas reuniões de estudantes, tão parecidos em toda parte, sobressai e se impõe. Acontece-lhe discutir noites inteiras com Cecil, seu irmão, mas moço cinco anos, jornalista também, por vocação.
Sobre esta efervescência intelectual, passa a nuvem sombria: a obsessão do nada. A Autobiografia de Chesterton não é de nenhuma maneira uma confissão pública, cheia de revelações íntimas. Apenas, na recapitulação dos anos passados, todo um período perturbado de sua vida aparece “como ego suicídio espiritual”.
Mas eis que se apresentam os sintomas da cura, os pensamentos que ele anota sobre um caderno. Chesterton está já entregue por completo a estas efusões juvenis que abunda nos temas principais de sua obra. Folheemos este Note-Book tão revelador. Encontraremos – legado espiritual dos ancestrais puritanos – uma ligação espiritual dos ancestrais puritanos – uma ligação sentimental à pessoa de Cristo, independente de toda adesão às verdades reveladas:
“Um homem viveu, há séculos, no Oriente. Eu não posso olhar para uma ovelha, para uma andorinha, para uma açucena, para um campo de trigo, uma vinha, uma montanha, sem sonhar com Ele...”
E eis os primeiros acordes deste hino à virtude da humildade que vai amplificar e ressoar em toda a obra de Chesterton:
“Grande Deus que fazes inclinar o céu e a estrela, inclina para Ti nossos pensamentos altaneiros...”
Ele já compreendeu – o que não é a ordinária compreensão dos vinte anos – que esta virtude era, não o refúgio dos fracos, mas o pão dos fortes, “a descoberta estimulante, o paradoxo elevado do cristianismo”. Sobretudo, estas páginas de juventude encerram já o que é a mensagem essencial de Chesterton: “convicção primordial, quase mística, do milagre que é a existência”.
Sim, é bem um místico – ou quase um místico – por temperamento. Seu ato de adoração antecipa seu ato de fé. Bem antes de aderir ao Credo de uma Igreja, ele se associa ao “élan” do Te Deum, ao hino de gratidão pela permanência do ato criado.
Enquanto sua inquietude o conduz aos teósofos e aos espíritas, uma reação se esboça nele contra a delinqüência de seu tempo. Contra o pessimismo que reina na literatura em voga (paradoxos desabusados de Oscar Wilde, blasfêmia de Swinburne, desespero que leva ao suicídio os personagens de Thomas Hardy), Chesterton forja suas armas das quais a principal é um humor que lhe é próprio e que consiste em lançar, como paradoxos surpreendentes, verdades desprezadas.
COMEÇOS DA CELEBRIDADE
A aurora do século coincide com o início de sua notoriedade. Como não assina mais que suas iniciais em seus artigos no Speaker, perguntam quem será G.K.C. A guerra do Transvaal fornece-lhe ocasião de descer à arena.
Torna-se um dos mais fogosos representantes do partido pró-bôer, que recruta um certo número de adeptos entre os intelectuais ingleses, e particularmente entre os católicos e simpáticos. Assim, um religioso anglicano que se encaminha para abjuração, Robert Hugh Bensnon, ousa, em seus sermões, chamar de “pecado” a guerra que os ingleses conduzem contra os Bôers.
Os artigos de Chesterton opõem o imperialismo ao patriotismo, a fugacidade das conquistas longínquas à continuidade da nação. Sua eloqüência, tanto mais calorosa quanto mais fustiga a opinião pública, invoca o dia em que o British Empire se reduzirá a pó: neste dia ainda se encontrarão, diz, homens prontos a morrerem pela Inglaterra.
A filosofia de Chesterton procura fixar os limites que nos impõem a nossa natureza e o nosso destino. Ele é apologista das comunidades pequenas, da vila, da pequena propriedade rural: O homem que trabalha em sua horta, e para quem o desconhecido começa além de sua cerca, é o homem de grandes idéias.”
É também defensor da família, não porque ela seja asilo de paz, muito ao contrário, porque é um campo fechado onde se temperam os caracteres...E a ilha sem recursos de Robinson interessa-o mais que os mares freqüentados.
Enquanto quebra lanças com os seus entusiastas de um Império Britânico indefinidamente crescente – Kipling à frente – Chesterton compõem seu primeiro romance: The Napoleon of Notting Hill (publicado em 1904). Suas idéias pedem imagens, sua filosofia ilustra-se de ficções. Aqui, Chesterton se inspira em um anacronismo: a autonomia administrativa de Londres. A epopéia do quarteirão contra a cidade, de cada quarteirão, cioso de suas tradições e de sua independência, torna-se alegoria do nacionalismo.
CHESTERBELLOC
Frente aos seus adversários, encontrou um irmão de armas que serve às mesmas causas com o mesmo espírito: Hilare Belloc. Foi em 1906, em um restaurante de Soho onde se encontra “a boa comida francesa” que eles se conheceram. Meio que combatia o imperialismo e se declarava a favor dos Bôers. Quatro anos mais velho que Chesterton, este conversador sem par, este lançador de ideias dotadas de potência persuasiva, adquiriu sobre ele uma influência em todos os domínios, inclusive nos da religião. Belloc era católico. Não havia desacordo em sua colaboração. Quando seu adversário Bernard Shaw quis sua pulverizar suas doutrinas, dirigiu seus ataques contra um dragão de duas cabeças que batizou de “Chesterbelloc”! Bernard Shaw, Wells, Kipling e alguns outros: estes são os profetas do erro que Chesterton enfrenta em seu livro Heretics (1905). Ele os acusa, em resumo, de inventarem novas religiões. Na vaidade das crenças, os super-homens e os gigantes de Shaw e de Wells degradam a medida humana que coincide precisamente a harmonia da cristandade. Ataques rudes, misturados de zombarias, conduzidos com o cuidado de não infligir feridas pessoais. Este combate de pena é justa em que, em uma alegoria de Chesterton, The Ball and the Cross, o cristão e o ateu combatem incansavelmente. De fato – e o que é uma honra para uns e outros – Chesterton contínuo, entretanto, a manter relações cordiais com seus “Heréticos”, Wells e Shaw, sobretudo.
NA FASE DO ANGLO-CATOLICISMO
Heretics é uma refutação (se retirarmos desta palavra o que ela tem de didático), enquanto o livro Ortodoxy, o livro mais importante de Chesterton (1908) – passado de moda mas que surpreende por sua frescura e espontaneidade – quer restabelecer os verdadeiros valores humanos que são ao mesmo tempo, no pensamento do autor, os valores cristãos, especificamente católicos.
Ele confessava que, quanto mais progredia no conhecimento da vida, mais lamentava o desaparecimento da antiga fé católica de seu país. Parece correto dizer que Chesterton passou um só golpe, da descrença à guarda avançada da Alta Igreja Anglicana, ponta extrema bastante próxima do catolicismo pela doutrina e pelo ritual.
Esta primeira conversão se realizou sob a influência de Miss Francês Blogg, que Chesterton se desposou em 1901 – com vinte e sete anos de idade. Sua mulher era anglo-católica praticante e zelosa.
O anglo-catolicismo é uma posição intermediária entre o anglicanismo e o catolicismo, posição que parece à primeira vista desafiar a lógica, mas que se harmoniza com a psicologia anglo-saxônica. Seus adeptos, permanecendo oficialmente desligados de Roma, deploram a dilaceração do cristianismo no século dezesseis; eles sonham com uma reconciliação entre Roma e Cantorbery, sob a forma de uma aliança que salvaria o orgulho nacional.
O anglo-catolicismo vem do Movimento de Oxford, que lhe deu sua organização; mas na realidade, sua origem é ainda mais longínqua – talvez da própria Reforma, que a alma tradicional e religiosa do inglês não aceitou sem reservas. O anglicanismo, fiel aos vestígios que recusava abolir, é um meio-termo que devia provocar em seguida outros compromissos; o mais audacioso, o mais paradoxal, é precisamente o anglo-catoliscimo, inicialmente chamado de Puseyismo, devido ao nome de Eduardo Pusey, o amigo de Newman que tinha recusado imitar sua abjuração (1845), para se dedicar à tarefa de catolicizar o anglicanismo por dentro. Seus discípulos se dedicam a restaurar o uso perdido da confissão, a fundar conventos, e transformar templos em verdadeiras Igrejas, decoradas, preparadas para a celebração do sacrifício essencial: a Missa. Um estudante de Christ Church, Charles Wood – mais tarde Lord Halifax, -- recolhe a herança espiritual de Pusey e continua sua obra que, sob seu impulso, recebeu grande desenvolvimento. Em 1980, a liga presidida por Lord Halifax – a English Church Union – que trabalha neste movimento de retorno para um passado católico, conta com trinta mil pessoas. E Lord Halifax, por intermédio de um Lazarista francês, o abade Portal, entabulará conversações com Roma. Uma comissão de inquérito, formada de teólogos e historiadores, colocou em estudo a questão da validade da ordenação sacerdotal recebida pelos pastores anglicanos e preparou um memorial para Leão XIII. O resultado se revelou desfavorável: a 18 de setembro de 1896, a bula Apostolicae curae proclama a não validade dessa ordenação. Duro golpe para Lord Halifax, mas ele é um paciente que conserva esperança.
Não parece supérfluo relembrar estes fatos, porque é muito significativo que Chesterton se tenha reaproximado dos anglos-catolicos, vários anos antes desta derrota. Ele se engajava em um caminho se saída, mas gostava das causas perdidas. Admirador do mundo medieval exaltado por estes catolizantes, campeão dos corajosos clérigos que combatem a hostilidade da massa protestante e de seu velho grito de guerra: No Popery (abaixo o papismo).
Há rixas nos adros: seguem-se processos. E isto por causa de casulas, círios, alguns grãos de incenso! Mas a massa, insurgida contra o ritual anglo-católico que denomina idolatria, rende assim uma homenagem inconsciente à força dos símbolos.
Chesterton, o combativo, apaixonou-se. Como os santuários levantados por seus novos amigos, seu pensamento também se desligou do protestantismo. Até 1922, ele permanecerá este quase católico, este católico inacabado.
TRABALHO INCESSANTE
E os livros se sucedem em uma cadência de três, de quatro ou mesmo de cinco ou seis por ano. Ficções simbólicas em que o sentido sagrado se mistura curiosamente aos trabalhos de humor (The Man Who Was Thursday, 1908), The Ball and the Cross, 1909; Manalive, 1912); curtas biografias onde Chesterton exerce seu dom de atingir o essencial (Robert Browning, 1903; Charles Dickens, 1906; Willian Blake, 1910, etc.); sobretudo ensaios.
O título de uma coletânea poderia servir a toda sua obra: Waht’s wrong with the world (1910). O que está errado no mundo: eis o que obseca Chesterton. Este sentimento de incoerência, de instabilidade, ele evoca em seus livros, artigos, conferências, com uma insistência que as imagens poéticas salvam da monotonia:
“Parece que a ação de uma feitiçaria aniquilou as roseiras para deixar suspensas no ar rosas, feridas de morte pelo sol, e que subsistem apenas os raios; que, em sumo, o essencial e as causas essenciais estejam perdidas, enquanto permanecem os resultados transitórios e secundários. Sim, a desordem vem de que os campanários e os palácios permanecem intactos, mas privados de suas fundações. Nós sofremos de um mal que ataca unicamente a ossatura.
As aparências estão fora do nosso alcance. Como por exemplo o brilhante espetáculo do casamento: mas o casamento em si mesmo está enfraquecido. E se a aristocracia é conservada, é com esta condição: cessar de ser aristocrática...”
Um mundo que perdeu suas razões de ser, um mundo que as catástrofes rondam. O famoso “otimismo” de Chesterton é relativo: o retorno incondicional ao cristianismo é o único remédio.
Em um de seus clubes onde se reúnem para debates contraditórios, Chesterton é acusado de depreciar muito o presente e de superestimar o passado. Crítica que não é sem motivo. A influência do anglo-catolicismo, posição estática, arcaica, Chesterton deve, talvez, certas paradas de seu pensamento na nostalgia medieval; mas ele se instrui durante todas as controvérsias, a ponto de dizer que verdadeiramente aprendeu o cristianismo na escola de seus adversários.
Tal é a vida sobrecarregada trepidante, mas uniforme, de um escritor, jornalista e conferencista – Chesterton será até editor de seu próprio jornal! Mas, como gosta dele! “O jornalismo, exclamava, é a maior obra anônima depois das catedrais!”
RAZÕES DE UMA CONVERSÃO
Os grandes acontecimentos de uma tal existência passam-se no pensamento. A aventura espiritual de Chesterton, é ter transposto, depois de longas incertezas, o passo decisivo que separa o anglo-catolicismo do catolicismo romano.
Quando lhe perguntavam porque se tinha convertido, respondia laconicamente: “To get rido f my sins: para me desembaraçar de meus pecados”. O Beneditino Father Rice, que recebeu sua abjuração, sublinha este motivo determinante: Ele se tornou católico, nos diz, por causa da ação eficaz da Igreja sobre o pecado. Não é o sentimento de um ilogismo que o desaloja do meio-termo anglo-católica. Mas preocupado com a psicologia que com a apologética, inglês influenciado antes de tudo pelas razões da experiência, Chesterton escolheu a Igreja de Roma porque ele perscruta os mistérios do coração humano, mais profundamente que qualquer outra comunhão cristã, com uma acuidade de intuição sobrenatural que confessava não ter encontrado em nenhum outro lugar em tão elevado grau.
E porque ela possui, da maneira mais autêntica, os ritos purificados que permitem a renovação da alma.
O PADRE BROWN, PADRE DETETIVE
Aquele que contribui muito a firmá-lo nesta convicção de que a Igreja é a única capaz de renovar as almas, é um simples cura de aldeia, Father O’Connor encontrado por acaso em casa de amigos, durante um fim de semana. Um padre apareceu, com ar desajeitado e ingênuo, um enorme guarda-chuva sob o braço, cheio de embrulhos.
Mas, em seguida a um passeio em sua companhia sobre planaltos do Yorkshire, Chesterton verifica que este pequeno eclesiástico inocente, guiado por sua experiência das almas, sabia melhor os segredos do vício e do crime que o mais experimentado policial de Londres. A fantasia de Chesterton inspirou-se em um detetive imaginário, o Padre Brown. O escritor, caricaturando seu aspecto físico, rendia homenagem à santidade do padre que foi seu conselheiro e amigo.
O Padre Brown! Nós vemos se desenhar sua silhueta inesquecível em uma quarentena de contos reunidos em vários volumes (The Innocence of Father Brown). Não são os melhores livros de Chesterton, (quantas bizzarias e coisas inverossímeis!) mas pode ser que sejam aqueles menos envelheceram. Brown aparece no local de um roubo ou de um assassinato. Faz perguntas que parecem absurdas. Ninguém lhe dá atenção; que, esclarecido por um instinto místico, desmascara os atos, as palavras, as fisionomias, as atitudes. Termina por designar os verdadeiros culpados!
ABJURAÇÃO 1922
A história da conversão de Chesterton é pontilhada de encontros decisivos: Frances Blogg, a jovem anglo-católica fervorosa que ele esposa, Hillare Belloc, Father O’Connor.
Notamos também a influência de uma viagem. Foi em 1919. O irmão mais moço de Chesterton, Cecil, jornalista famoso pela violência de suas polêmicas, vítimas da guerra, morreu na religião católica, no hospital de Boulogne-sur-Mer. Chesterton visitou a Palestina, e retornou decidido à abjuração. Escala em Brindisi: entra em um santuário, e , diante de uma pobre imagem de Nossa Senhora, formula uma promessa, que cumprirá, três anos mais tarde.
Dois amigos precederam-no sobre o caminho que ele toma. Foi Ronald Knox, filho de um bispo anglicano, antigo capelão de Trinity College em Oxford, que contou em sua Eneida espiritual as perplexidades que o levaram a sua conversão. O outro amigo, que lhe estenderá a mão na hora decisiva, é o romancista Maurice Baring. Chesterton pinta-o em suas memórias como um alegre companheiro; foi confidente de seus pensamentos graves, e exerceu diretamente seu proselitismo, se podemos julgar por uma resposta de Chesterton a uma de suas cartas, em 1920: “Eu tinha até então pensando que se podia ser anglo-católico e católico por dentro, em seu íntimo. Mas se isto não é mais que permanecer no pórtico, menos ainda um pórtico separado do edifício principal.”
A mulher de Chesterton também sonhava com a conversão, mas não encontrava o caminho “bastante claro”. Suas hesitações não faziam mais que prolongar as de seu marido. A sua coletânea de poemas, The Ballad of the White Horse, uma de suas primeiras obras, assim “A ti que me trouxeste a cruz de Cristo”. Reconhecia assim a parte de sua mulher em seu retórico – ou melhor, em seu acesso à fé.
Em 1922, Chesterton pronunciou sua abjuração; algum tempo depois, sua mulher imitou seu exemplo.
“Tanto quanto um homem possa ter orgulho de uma religião que tem raízes na humanidade, eu sou orgulhoso da minha e muito particularmente do que se detrata sob o nome de “superstição”. Sim, sou orgulho por estar cercado pelos dogmas “vetustos” (assim falam meus confrades em jornalismo!), porque sei bem que são as heresias que morrem, e os dogmas razoáveis são os que vivem bastante tempo para que possam olhar para eles como se fossem antiguidades.”
Ele exprimiu, em termos felizes, o que sente o convertido no momento de entrar na Igreja:
“As pessoas de fora pensam ver o convertido entrar de cabeça baixa em um pequeno templo cujo interior – elas estão convencidas – é guarnecido como uma prisão, ou como uma câmara de tortura. Mas, tudo o que sabem a este respeito, é que ele atravessou uma porta. Não sabem que ele se dirigiu não para uma obscuridade interior, mas para a luz de um grande dia.
Por certo, no último minuto, o convertido tem muitas vezes a sensação de olhar através de uma janela de leproso. Ele olha por uma pequena fenda ou um orifício tortuoso que parece torna-se menor quando o fixa; mas é uma abertura que leva ao altar.
É apenas quando penetra na igreja que descobre que a Igreja é bem maior por dentro do que fora. Ei-lo sob vastas cúpulas, tão abertas como a Renascença, e tão universais como a república do mundo.
Pode dizer então, em um sentido de desconhecimento a todos os homens modernos, certas palavras antigas, cheias de serenidade: Romanus civis sum; eu não sou escravo...”
Chesterton afirma daí em diante, com seu humor alegre e combativo, a fé que possui e professa. Os livros que publicará em seguida retomarão os temas que foram os de suas polêmicas precedentes: absurdo das teorias que admitem um universo sem Criador, ligação ao Cristo, aos valores cristãos, à Igreja. Assim, em The everlasting man (1925), onde mostra em largo afresco o desenvolvimento da idéia religiosa através das civilizações.
A IGREJA CATÓLICA
Sua admiração pela Igreja católica saia muitas vezes de sua pena sobretudo em seu opúsculo The Catholic Church and Conversion:
"A Igreja católica é a única coisa que poupa ao homem a escravidão degradante de ser uma criança de seu tempo. As novas religiões são, na maioria, adaptadas às novas circunstâncias, mas quando as circunstâncias tiveram mudado no espaço de um século, os pontos sobre os quais elas insistem hoje, serão talvez quase sem interesse...
Quando a nova religião semeou seu único campo de aveia, que o vento leva geralmente para longe, ela se torna estéril. Ao contrário, a Igreja católica possui uma grande variedade de riquezas; ela pode fazer uma seleção entre os séculos e salvar uma época por outra. Ela pode fazer apelo ao velho mundo para restabelecer de novo o equilíbrio...
A Igreja defendeu a tradição, em uma época que rejeitava e desprezava estupidamente esta mesma tradição. Mas foi simplesmente porque a Igreja é sempre única a defender tudo o que é, no momento, estupidamente desprezado.
E ela começa já a única campeã da razão no século XX, como foi a única campeã da tradição no século XIX...No meio de todas as filosofias irracionais, a nossa permanece a filosofia racional.”
Longe de esmagar seu pensamento, a Igreja ensina-o a usá-lo melhor:
“Tornar-se católico não quer dizer parar de pensar, mas aprender a pensar. Pela primeira vez, o convertido tem um ponto de partida para pensar correta e seriamente. Pela primeira vez, tem um método para provar a verdade de não importar que questão...
O que chama atualmente de livre pensamento, é apreciado por alguns, não porque seja o pensamento livre, mas porque é a liberação de pensar, a livre ausência de pensamento...”
Por outro lado, ele não é terno para com aqueles que abandonam a Igreja:
“Alguns especialmente entre os jovens, abandonam a prática do catolicismo. Mas nenhum deles o abandona pelo protestantismo.
Eles abandonam por coisas, não por teorias; e quando tem teorias, elas podem ser, por vezes, teorias bolchevistas ou futuristas, mas não são praticamente as teorias teológicas do protestantismo.
Eu não diria que ele abandona o catolicismo pela cerveja e o jogo, porque o catolicismo nunca proibiu, como o protestantismo, estas instituições. Eles abandonam para se darem à boa vida...
Sei que os velhos racionalistas pretendem que sua razão os impeça de retornar à fé, mas é falso: não é a razão, mas a paixão...
Eles sentem, de maneira que não é desarrazoada, que o fato de se colocar face a face com o catolicismo significa tomar responsabilidades que agem constantemente como um freio.”
ÚLTIMOS TRABALHOS
O último período literário de Chesterton é dominado por duas efígies de santos: seu S. Francisco de Assis, e o seu S. Tomás de Aquino, os monges da Idade Média, o gordo e o magro, que opõe em um pitoresco contraste!
Não se preocupe nem a erudição, nem mesmo a narração histórica nestes retratos, desenhados em linhas simplificadas. Em nenhum outro lugar Chesterton manifestou a força de síntese que é o seu dom mais surpreendente. Em seus S. Tomás de Aquino, a intuição genial supera a ciência, de tal forma que um tomista famoso, Ètienne Gilson, podia dizer: “Estudei S. Tomás de Aquino durante toda minha vida, e contudo não seria capaz de escrever um livro como este.”
A intenção apologética inspira igualmente estas duas obras. Fazendo alusão a seu próprio itinerário espiritual, escreve nas primeiras páginas de seu livro sobre S. Francisco: “...este volume...dirigi-se unicamente àquela parte do mundo moderno que pode admirar S. Francisco, mas aceitá-lo mal, ou que pode aceitar o santo, com exclusão por assim dizer, da santidade.
E meu único direito de tentar esta tarefa, é que tenho, de minha parte, conhecido por muito tempo esta atitude, sob formas diversas. Milhares de coisas que agora compreendo em parte, pensei que fossem totalmente incompreensíveis; muitas coisas que agora considero sagradas, teria banido como simples superstições, muitas coisas que me parecem límpidas e luminosas, hoje que estão esclarecidas dentro de mim, tê-las-ia, de boa fé, tratado com obscuras ou bárbaras quando as via de fora, nos dias longínquos de minha infância, onde a glória de S. Francisco de Assis inflamou, pela primeira vez, minha imaginação...
...A figura de S. Francisco eleva-se sobre uma espécie de ponte que liga minha infância e minha conversão e muitas outras coisas...”
FIM DE UMA VIDA
Como os anos Chesterton tornou-se um colosso obeso que divertia – embora se tratasse de uma verdadeira enfermidade – com sua corpulência e seu peso, o olhar azul brilhando atrás de um “lorgnon” de ouro, trajos negligentes, excêntricos e célebre por suas distrações. O que ele diz de Dickens convém a si mesmo: “'”.
Um gigante que assesta duros golpes, mas sem despertar animosidades.
Quando entra em uma peça, acende seu charuto, começa a beber uma xícara de café, nota-se que esboça um sinal da cruz, marcada da gratidão para com a criação contínua. Este gesto original lembra seu ponto de partida espiritual: este Credo de encantamento que se encontra na origem de sua conversão. Ele não esquece nunca que tudo que existe pode ser, de um instante para outro, mergulhado no nada. E as estrelas lhe aparecem como jóias, perpetuamente salvas de um naufrágio. Gasto por um trabalho excessivo, coração doente, Chesterton falece subitamente, sem sofrimento, a 14 de junho de 1936. sobre os lábios do moribundo, captaram estas palavras premonitórias: “Um combate se engajou...trevas e luzes... Qual será o resultado?”
Os mortos vão rápido, e é o destino dos polemistas, passar ainda mais depressa. O que resta de inalterável na obra de Chesterton, é menos o detalhe que um ritmo geral, um impulso, o dinamismo mesmo que liga a seu nome, uma explosão de alegria sobrenatural, um hino à vida dada por Deus.
BIBLIOGRAFIA
O trabalho de Cheterton é muito grande para que enumeremos aqui todas as suas obras.
Eis as principais, traduzidas em francês:
Charles Dickens, Paris 1906, (Delagrave) – Héretiques, Paris, 1930. (Plon) – L’Homme éternel, Paris, 1927, (Plon) – Napoléon de Notting Hill, Paris, 1912, (Edições da Nouvelle Revue Française) – Orthodoxie, Paris, 1923, (Rouart et Watelin) – La Sphere et la Croix, Paris, 1921. (Cres) – Saint François d’Assie, Paris 1925, (Plon) – Sant Thomas d’Aquin, Paris, 1935, (Plon) – Ce qui cloche dans le monde, Paris 1948 (Gallimard) – La sagesse du père Brown, 1936 (Gallimard) – Poèmes choisis (Introdução e tradução da senhora E. M. Dennis-Graterolle) (cahiers dês Poetes catholiques, Paris-Bruxelles, 1938) –L’Eglise catholique et la conversion (Bonne Presse 1952).
Sobre Chesterton:
Antes de tudo, sua história contada por ele mesmo Autobiography (Londres 1937), traduzida em fracês sob título; L’Homme à la clé d’or – Autobiography (Paris 1939, desclée de Brouwer).
A biografia verdadeiramente completa é a de Maisie Ward: Gilbert Keith Chesterton (New York, 1943 – Londres, 1944).
Entre os numerosos ensaios críticos, mencionamos J. de Tonquédec, Chesterton, suas idéias e seu caráter (Paris, 1920) e o notável estudo de André Chevrillon: Une Apologie du Christianisme (escrita em 1909), publicada mais tarde em Lês Nouvelles études anglaises, 1918, e que parece ter sido a primeira ou uma das primeiras revelações de Chesterton ao público francês.
Em português; – O homem que era Quinta-feira – Ed. AGIR, 1957.
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*Capítulo retirado da obra “Convertidos do Século XX”, de F. Lellotte S. J., Ed. AGIR - 1960, P. 139-152.
** Sócia das Gens de Lettres e membro do júri Femina, Agnes de La Gorce publicou muitas obras de grande valor literário, orientadas para a História e a Psicologia religiosa. Ela é filha do historiador e acadêmico Pierre de La Gorce. Entre suas obras citamos: Robert Hugh Benson, prêtre et romancier; trouve la joie; saint Benoit Labre (Plon); Wesley, maitre d’um peuple (Albin Michel). O mais recente e o mais importante: Camisards et Dragons du roi (Albin Michel).
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